Poucos livros são capazes de prender a atenção do leitor comum – e o verdadeiro leitor ou leitora é uma pessoa “comum”- como esta narrativa À Luz da maternidade, escrita por Fernanda Carvalho, editora Inverso, 2022, 233 p. Isto porque ela consegue superar as fronteiras disciplinares graças à convegência de seu talento com a riqueza humana do biografado. De fato, embora todo o livro seja pensado como uma grande e merecedora homenagem ao médico Gerson de Barros Mascarenhas, responsável, na Bahia e no Brasil pela ousada difusão do Parto Sem Dor, uma filosofia de vida que visava restituir não apenas o protagonismo da mulher no parto, mas também libertar a própria Medicina que ele via ameaçada por uma submissão à perigosa cultura mercantilista, a narrativa vai muito além da mera biografia de um homem generoso e com fé na humanidade. Bem informado e erudito, o Dr. Gérson de Barros Mascarenhas não estava sozinho nessa luta, sendo ele próprio um dos seguidores e admiradores da Medicina praticada na antiga União Soviética que se constituiria, durante muitos anos, num laboratório revolucionário da mais moderna Medicina. Este desvirtuamento da Medicina já havia sido denunciado por outros pensadores, notadamente Ivan Illich, que afirmava: “Chegou a hora de tirar das mãos do médico a seringa, como se tirou a pena das dos escritores durante a Reforma. A maioria das doenças que temos hoje em dia podem ser diagnosticadas e tratadas por pessoas comuns. Para a maioria essa declaração é muito difícil de ser aceita, porque a complexidade do ritual médico lhes ocultou a simplicidade de seus próprios instrumentos básicos…” Outra não seria a visão do Dr. Gerson de Barros Mascarenhas sobre a gestação, o parto e a própria Medicina, ao tentar, em Salvador, a humanização do parto, a reconciliação da mãe com sua natureza. Assim, esta homenagem póstuma a um médico termina por constituir-se numa narrativa que vai além da mera biografia. De fato, com a necessária erudição, revelando-se uma competente pesquisadora, Fernanda Carvalho faz mais do que narrar história de uma vida : é toda a história das práticas médicas em torno da obstetrícia, na Bahia e no Brasil, por extensão, que vai colorir o pano de fundo deste livro emocionante.
A leitura deste livro possibilita a revisitação da vida cultural, social e política do Brasil, graças à técnica narrativa de Fernanda Carvalho que, com leveza e exatidão, nos traz os chamados anos de chumbo com a ditadura militar perseguindo e prendendo os chamados “subversivos” ou “comunistas”, com o arbítrio negando até mesmo a intercessão desta que se tornaria a Santa Dulce dos Pobres. De fato, preso por suspeita de subversão, o então diretor médico do Hospital Santo Antonio, corajosa e crente na oa fé dos homens, a Irmã Dulce iria recorrer às autoridades militares a libertação do Dr. Gérson, em vão. Fernanda Carvalho, mulher, jornalista e mãe, ela própria, de modo audacioso, que optou por parir sem dor, tece, com maestria, uma narrativa que pode ser etiquetada como um romance biográfico, cobrindo os anos de 1915 ( nascimento da principal personagem, Dr Gérson), a 2022 (ano da publicação do livro). Nesta narrativa que flui como as águas de um cristalino riacho na planície, a autora se coloca como uma narradora participativa, personagem que, pelo poder da palavra e da escrita, recupera vozes silenciadas e assim restitui à história médica e social da Bahia a figura de um homem que tentou, com êxito, permitir que a mulher pudesse dar à luz sem o estigma da moral religiosa e misógina que ainda quer fazer acreditar que a mulher, por ser “fonte do pecado”, devesse sofrer as dores do parto.
O trabalho do Dr. Gérson, que Fernanda Carvalho quer destacar, está bem repertoriado neste livro que é um belo inventário das práticas obstétricas que usurpariam da parturiente o seu protagonismo, com o auxílio de medicamentos. Merecidamente, O Dr. Gérson de Barros Mascarenhas, destaca-se com esta tentativa exitosa de romper a condenação religiosa da concepção como ato natural doloroso. Outros, como o Dr. Michel Odent, na França, que afirma que”Para mudar o mundo, é preciso antes mudar a forma de nascer”, continuam a oferecer as condições para o devido protagonismo da mulher desde a gestação até o parto (p. 204, e https://www.institutomichelodent.com.br/ ); e, em Salvador, no Centro de Parto Normal, na Mansão do Caminho, onde atuou como seu Diretor, o dr. José Carlos Gaspar nos diz que ‘’Hoje, mais do que nunca, evidências científicas demonstram que os métodos não farmacalógicos de alívio da dor funcionam. As mulheres e o mundo inteiro precisam rever o vaticínio do “parirás com dor”, como se fosse um determinismo”( p.220);Ou na Chapada Diamantina, o naturopata Dr. Áureo Augusto Caribé Azevedo que nos lembra que “Dizer que a mulher tem que sentir dor para parir, não. A maioria sente dor porque não está preparada e segura. Inclusive em uma sociedade como a nossa em que as pessoas estão excessivamente medicamentalizadas. Sente uma coisa, toma logo um remédio. O limiar da dor fica muito baixo”(p.212). E, corroborando a crença nesta benvinda mundança de paradigma, profetiza o catedrático Prof. José Adeodato Filho, da Faculdade de Medicina da UFBA: “”Algum dia o parto perderá a feição de ato perigoso e desagradável para se apresentar apenas sob outro aspecto, sentimental, afetivo, que representa o advendo de um novo ser. Algum dia, as mulheres perderão o medo da mais empolgante e bela das funções fisiológicas e, então poderão gozar em toda plenitude a sensação deveras incomparável de serem mães” (p.38).
Tecido com uma técnica narrativa que convence o leitor/a leitora a seguir o fio condutor quase como encantado pela leitura, este livro também pode ser lido como um libelo contra a violência obstétrica profundamente sofrida pela maioria das parturientes, e por isso também nos comove e nos ensina a respeitar a vida. E, nas entrelinhas, mais sugerido que dito – como somente o bom escritor sabe fazer- a autora entoa um cântico à vida em sua inteireza, celebrando a afetividade que deve cimentar as relações interpessoais a partir da concepção até a fundação da família com a chegada de um membro desejado e querido que, mesmo que venha chorando, encontra sua mãe sorrindo.
Palavras-chave: Parto sem dor, medicina, protagonismo, maternidade, afetividade, cultura, sociedade