Nas 144 paginas do livro Journées internationales des droits des femmes-2011-2023- Douze ans de poèmes pour l’occasion, editado pela Les impliqués,Paris, 2023, ISBN 978-2-38541-559-4, Marie-Rose Abomo-Mvondo Maurin, com dupla nacionalidade camaronense-francesa, professora de língua francesa aposentada, pesquisadora que integra também, no Brasil, o grupo de pesquisa aglutinado no CELCFAAM- Centro de Estudos em Literaturas e Culturas franco-afro-americanas outrora sediado na Universidade Estadual de Feira de Santana, esta que pode ser considerada a mais francesa das africanas e a mais africana das francesas, lança este livro de poesias temáticas, em homenagem à Mulher. Poderia ser apenas mais um livro de poemas, ou apenas mais um salamaleque, bem circunstancial, destes pensados e preparados para marcar uma efeméride e assim integrar-se ao conjunto das convenções sociais que reduzem a um só dia a homenagem à Mulher. Não é isto o que a autora pretende. E deixa claro em seus versos do poema Il faut savoir crier:
[…]Pendant douze ans, / Il m’arrive de croire que je me repète,
Et pour mieux me répéter.
je me suis attelée à amplifier le cri féminin
à esquisser ses formes et ses tonalités …
[…] L’intitulé de cette journée me laisse perplexe.
On parle d’une journée. Pourquoi une seule?
Est-elle suffisante pour ce que fait une femme? (p.9).
Este é um livro que não quer repetir o lugar comum que se convencionou supostamente prestar homenagens sentimentais, melosas, e efêmeras, para que tudo possa continuar como dantes. Não, a autora deste livro nos faz um poema na tradição da poesia de combate social que tem seus representantes mais emblemáticos nas figuras de Victor Hugo e, mais contemporaneamente, Louis Aragon, na própria França, ou um Thiago de Mello, no Brasil, e no cancioneiro popular, um Brassens, ou um Brel, um Chico Buarque de Holanda, no Brasil, ou nos jovens cantores de rap ou hip hop. Como os outros poetas compremetidos com as lutas sociais de seu tempo, Marie-Rose Abomo-Mvondo Maurin é uma artista engajada que sabe que, como nos lembra Frantz Fanon : “a humanidade espera muito mais de nós”, e se coloca à disposição para os embates que o seu tempo oferece para que a mulher possa viver com dignidade, como podemos ler nos versos: ,
- La femme que je suis se veut femme de tous les combats
- du combat qui donne sens à la vie!
- La femme que j’aime se veut militante,
- militante pour l’équilibre de l’humanité!/ […](p.41)
Emprestando sua voz para romper a mudez à qual se condenaram no mundo ocidental e ainda se condenam milhões de mulheres, em grande parte do planeta, a autora lança ao mundo em forma de versos este grito indignado :
Mon esprit de femme toujours rebelle
M’interdit de croire l’espace limité
D’un concept de la “journée de la femme”
Pour mieux appréhender ce que vaut la vie
Lorsque la femme la mène/ la contrôle,
la gère! p.15)
A Poeta sabe que, apesar das transformações culturais que chegam até os rincões mais longínquos do planeta, a maldição das ancestrais tradições culturais ainda determinam comportamentos e regras sociais. Assim, seja pelo tráfico humano que condena as mulheres à prostituição, arrancando-as do seio de suas famílias, neste desenraizamento que é o exílio forçado, sob a ilusão de uma vida melhor ; seja pelo casamento forçado, e também por esta outra cureldade inominável: a excisão do clitóris :.
Quand tu les rencontres,elles te sourient mais le sang coule.
Quand tu leur parles, le sang coule et dégouline de la plaie,
Lorsque tu les vois rire, elles cachent une interrogation triste.
Lorsqu’elles dansent, elles expulsent de leur corps le couteau
Le vilain couteau d’une vengeance et d’une culture ineptes
Sans explication autre que la sacrée tradition « c’ est ainsi ! »(p.136)
[…] Que dit la Journée Internationale de la femme quand, toujours,
Le sang dégouline et coule dans des têtes et des corps saccagés ? (p.139)
Atenta ao que se passa no mundo, vendo que as conquistas sociais são ainda frágeis, ou apenas esboçadas, e que podem desaparecer a depender da vitória ocasional de forças políticas reacionárias no mundo todo, a autora nos alerta
Le monde s’émeut, les poches de résistance s’installent
Aussi violentes, virulentes,vindicatives!
Défiant tout logique, toute humanité,
Pour que règnent la décheance, la honte. (p.61) […]
La vielle malédition change de visage
on avait cru que la femme avait trouvé une âme,
On avait espéré que la femme aurait désormais
Une âme, une âme, comme tout le monde, une âme,
La voici refoulée dans les temps obscurs de la non-existence
Dans le chaos primitif de l’absolu néant, si noir, si vide!(p.62)
[…]
Si la Journée Internationale de la Femme est un progrès,
Elle ne manque pas de nous rappeler le devoir de la femme:
Son combat est quotidien, sans repos, sans répit.
Le recént virement de son existence, pour un retour vers le néant
Oblige à une nouvelle organisation de son combat,
À une nouvelle affirmation de son être, de son devenir.
[…] (p.67)
Para evitar qualquer sombra de dúvida sobre o engajamento desta Poeta, ela própria oferece a necessária legitimação a este livro que é, de fato, um canto à Mulher, não à mulher abstrata, romantizada, ou vitimizada, como tem sido quase uma tradição moderna, a se lamentar da própria sorte que o patriarcalismo fez amarga, desde o livro do gênesis, nem tampouco ressentida, como nos mostra o identitarismo contemporâneo. Muito pelo contrário e as belas fotografias que ilustram este livro o comprovam, a autora faz questão de situar-se entre outras mulheres, ela própria falando a partir de sua história pessoal e vivenciando com elas diferentes situações, como bem nos mostram as ilustrações, em fotografias muitas delas tiradas pela própria Marie-Rose Abomo-Mvondo Maurin, outras por Jacqueline Ngo Manyim-Ateba, imagens que suplementam o texto poético.
Assim, veremos fotos de mulheres, ora sorrindo, ora em luto, ou nos trabalhos do campo, ou na vida acadêmica, em rituais os mais diversos. São trabalhadoras urbanas ou rurais, todas partilhando da condição feminina que é também e antes de tudo condição humana que as diferentes culturas vão demarcar e constituir como modos de ser e viver, fazer e amar e trabalhar de diferentes sociedades da África, da Ásia e do Brasil, exemplificdas neste livro de poesia.
É que Marie-Rose Abomo-Mvondo Maurin é antes de tudo uma pesquisadora da condição humana, e sabe que, na história da humanidade, a mulher teve seu protagonismo ofuscado ou negado, quase sempre o tempo todo; primeiro, pelo patriarcalismo que definia as sociedades arcaicas ou tradicionais, nas diversas culturas do mundo, e mesmo depois, com a modernização, na maior parte do mundo que se ocidentaliza pela ação do capitalismo que se expande e que continua, senão a provocar, ao menos a não permitir a eliminação de exclusões como nos mostra a Poeta nestes versos pungentes:
La femme est mère, / mais on ne respecte que la sienne,
La femme est soeur,/ mais tu ne respectes que la tienne;
La femme est fille, mais il viole tantôt la sienne
tantôt celle de son ami,
La femme est d’ or, / Mais régulierement
Tu pilles ton propre or! (p.19)
Conhecedora das lutas feministas, Marie-Rose Abomo-Mvondo Maurin presta sua homenagem às mulheres do mundo, homenageando-as não apenas com sua poesia, mas com as fotografias de várias delas. Uma reverência incontornável é o belo poema dedicado à intelectual belga Lilyan Kesteloot, uma pioneira nos estudos e na divulgação da literatura africana, repertoriando de maneira exaustiva a produção literária africana, conforme um dos seus mais célebres livros Anthologie de la littérature negro-africaine e em outras várias obras que deram a necessária visibilidade da riqueza cultural e espiritual da África a um Ocidente fechado em si mesmo. E, Marie-Rose Abomo-Mvondo Maurin, segue uma outra tradição instaurada por outro grande poeta, Léopold Sédar Senghor e assim como ele, manejando com esmero a língua francesa, enxerta-a com vocábulos africanos, e tece um texto rítmico, animado por cânticos e que pode ser acompanhado por instrumentos musicais africanos, como vemos nesta elegia intitulada Hommage à Lilyan Kesteloot
Que résonnent balafons, ayanga1,youyous et kora.
Voici mon au revoir à femme tirant sa révérence /
Dans tout sa majesté, majesté que lui confèrent
Et son travail, et sa détermination, et son intelligence.
Eyia ! Elle avance, elle est debout, la Femme,
Celle qu’envelopppent hommages et honneurs
De l’humanité, du monde, des femmes et des hommes.
Que résonnent tams-tams, tambours, gongs et cris
Pour la maîtresse du Koo2 de la littérature et des lettres
Pour la grande prêtresse de la littérature négro-africaine,
Pour celle qui a installé les écrivains noirs, grands recalés,
Sur le trône des littératures francophones et de la Littérature.
Hommages à toi en cette Journée Internationale de la Femme
Hommages! Honneurs! À toi, Lilyan Kesteloot-Fondang! (p.83-84)
Como toda boa literatura realista esta obra literária é, ao mesmo tempo, denúncia de uma distopia que ainda vige em grande parte do mundo, mas também é um anúncio das possibilidades da utopia concreta desde que conte com a adesão de homens e mulheres de boa vontade e coragem de lutar por um mundo mais justo onde convivam homens e mulheres, distintos na sua natureza, mas iguais em seus direitos e deveres cívicos. E isto passa por garantir à Mulher direitos ao seu corpo que é também direito a sua dignidade. É que aautora sabe que é a mesma humanidade que se esconde sob as aparências da diversidade, não importa seu gênero, sexo, etnia, cor de pele ou língua que fale. É para humanizar o humano que Marie-Rose Abomo-Mvondo Maurin clama e conclama mulheres e homens, jovens e adultos, neste belo livro que é um hino à sororidade.
1Grito de alegria
2Sociedade secreta das mulheres Bassa de Camarões, mas também uma força de resistência contra a colonização.