Desde Balzac que é o seu fundador, o romance vem conhecendo sucessivas tentativas de radicais rupturas com quase inevitáveis e felizes continuidades, de modo que continua sendo um gênero textual inacabado. Não é por menos que, já apontado por Bakhtin, este gênero literário guarda em si mesmo a heterodoxia. Aos que o querem encerrar numa categoria fixa, inamovível, etiqueta pronta e facilmente identificável, eis que de um novo texto explode uma nova forma, uma audácia nova, ou antiga ousadia é reelaborada e oferecida ao leitor que talvez se espante com a nova forma de narrar, no presente, o acontecido.
O certo é que, há diferentes formas de narrar, diversos estilos de dizer o acontecimento, e num mesmo texto literário podemos nele encontrar, de modo aparentemente displicente, ou abertamente provocativo, outros gêneros literários e extraliterários, toda uma diversidade linguística, assim como vozes, as mais surpreendentes, podem ser escutadas de um mesmo relato. É esta a maior riqueza do romance, cujos autores contemporâneos não se furtam a tentar experiências, sempre desejosos de reinventar, senão o gênero, ao menos a forma de dizer.
Um dos exemplos mais emblemáticos foi aquele do Nouveau roman que teve, na França, o seu ápice. Dois dos seus expoentes, Marguerite Duras e Alain Robbe-Grillet iriam enriquecer a arte cinematográfica com seus talentos, levando para as telas do cinema a forma fragmentária de narrar, recusando tanto a linearidade da narrativa quanto a tentativa de retratar as personagens. Na França, mas nascido na Argentina, tempos depois, na tradição desta tentativa de inovar o literário, Júlio Cartázar iria oferecer sua contribuição para o repensar da práxis romanesca como explicita a voz narrativa no capítulo “O processo mnemônico de escrever um romance” ao afirmar que “meu amigo Júlio, um radical na criação de mancuspias que qualquer narrativa pode se transformar em romance…” (p.55).
A Última travessia com a bela do Ray-ban, de José de Assis Freitas Filho, 100 páginas, editado pela Penalux, em 2015, e que somente agora eu o leio, apesar de me ter sido oferecido pelo autor com uma bela dedicatória naquele mesmo ano, é uma confessa homenagem ao melhor da Literatura, passando, claro, pelo Nouveau Roman e chegando até o presente com as possibilidades de criação de hipertextos.
De fato, este feirense de nascimento, jornalista e que – como Drummond e tantos outros- sobrevive honestamente como zeloso servidor público, ele que é também poeta e contista, e que fez seus estudos de pós-graduação em Letras, faz um divertido -porque pode causar surpreendentes reações de eventuais leitores e leitoras mais fortemente apegado/as a determinadas tradições- e inegavelmente agradável passeio no mundo das Letras e do Cinema, com incursões na música enfim, passeia no mundo das imagens que ilustram o nosso imaginário, sem se sentir obrigado a seguir uma linearidade no seu narrar.
De fato, outra é a pretensão deste escritor: com maestria, ele vai desconstruindo estereótipos e falsas hierarquias, mostrando que no mundo da ficção literária, como, talvez, da própria vida, o que importa é saber jogar com as possibilidades do uso da palavra, e, assim, ele consegue tecer uma narrativa híbrida como só o gênero romanesco permite, na melhor das tradições literárias sempre (re) inventadas pelo engenho e arte de bons escritores.
A erudição do escritor está patente, sem arrogância, desde as epígrafes com remissões a dois monstros sagrados da Literatura, um, icônico, Balzac, o outro, de talento reconhecido por estudiosos das Letras e ainda pouco divulgado no mercado editorial brasileiro, Campos de Carvalho o qual colocava em dúvida o gênero literário de seus próprios títulos, e segue até o final, com remissões à Música, seja ela clássica, com a ópera El Amor brujo, do espanhol Manuel de Falla, e a canção popular francesa Ne me quitte pas, de Jacques Brel, as quais vão ilustrar poeticamente não apenas o próprio enredo, mas principalmente o final da narrativa pensada em seis páginas intituladas Cartas.
Claro que, assim como o escritor tem seus predecessores, como nos lembra Borges, e nos prova José de Assis Freitas Filho com este seu A Última travessia com a bela do Ray-ban, também o leitor/a leitora apreenderá esta narrativa com seu capital cultural, com seu repertório adquirido através de inúmeras e sucessivas leituras não apenas de livros, como também de todas as interpretações decorrentes de suas experiências de vida. No entanto, é inconteste que A Última travessia com a bela do Ray-ban, de José de Assis Freitas Filho, se oferece ao leitor como uma possibilidade de enriquecedora leitura que pode ser feita, tanto buscando um possível fio condutor aparentemente escondido nos diferentes gêneros textuais contidos neste romance, tanto quanto uma leitura fragmentária, tomando como autônomas suas partes distintas e evidenciadas pelo próprio escritor que brinca com as linguagens, que suplementa seu texto narrativo tanto com a escrita comum às redes sociais, fácil, despojada, quase lacônica, ou reduzida, quanto com a prosa poética vigorosa em diversos capítulos dos quais destaco, preferencialmente, “Num movimento de câmara surge o pretérito” e “Uma possível história” nos quais o escritor enuncia o seu lugar de fala.
Para quem reconhece que o imaginário cultural e social do mundo tem sido construído graças à Arte, primeiro com a Literatura, em seguida com o Cinema -que bebeu e ainda bebe da fonte da narrativa literária – A Última travessia com a bela do Ray-ban, de José de Assis Freitas Filho, constitui-se numa surpresa agradável e divertida pela bela e tocante homenagem que o escritor faz não apenas à Literatura, mas também ao Cinema e à Música, reverenciando estas Artes que fabricam o imaginário cultural do Mundo. Desta forma, ao pagar um tributo a estas Artes que lhe constituíram, o escritor José de Assis Freitas Filho oferece este romance A Última travessia com a bela do Ray-ban, como um prêmio para quem, verdadeiramente, na leitura, sabe auferir o gozo estético.
Com formação em Filosofia e Letras com Francês, Humberto Luiz Lima de Oliveira, é professor titular de Língua e Literatura francesas, aposentado, com doutorado em Literatura (Université d’ Artois-França) e pós-doutorado em Literatura e Cultura Contemporânea (UFBA). Por sua contribuição à divulgação da Língua francesa recebeu a condecoração de Chevalier dans l’Ordre des Palmes académiques do Governo francês. Pesquisador independente, é tradutor, contista, romancista e editor da revista digital www.revistacadernosdosertao.wordpress.com
Adorei o texto. Aguardando ansiosa pela minha resenha!
em breve, Fernanda, seu livro é o próximo da fila.