L’ Espérance macadam, de Gisèle Pineau: quando os condenados da Terra quebram o feitiço do desencanto do mundo.

   A Diva Damato, in memoriam

1. Por que ler L’Espérance macadam, de  Gisèle Pineau?

1.1. Lugar de fala

Parto do princípio de que é necessário,  como mediador do conhecimento e como  crítico e  professor de literatura, estabelecer conexões, pois, como afirma Steiner: 

 […] em uma época em que a rapidez da comunicação técnica na verdade oculta  intransponíveis barreiras ideológicas e políticas, o crítico pode atuar como intermediário e guardião […] Do mesmo modo que busca estabelecer o diálogo entre o passado e o presente, o crítico também tentará manter abertas as linhas de contato entre as línguas”. A crítica amplia e complica o mapa da sensibilidade. Insiste em que as literaturas não vivem em isolamento, mas em uma multiplicidade de encontros linguísticos e nacionais. […] (STEINER:1988, p.27)

Ao tempo em que milito na e pela literatura, tenho um grande cuidado com o texto literário. Não por considerá-lo sagrado, pois precisamos aprender a sacralizar o profano, mas porque, de há muito não se pode mais acreditar  na inocência da literatura, nem podemos mitificar o seu poder transformador.

É bem verdade que, através dos textos literários, dos romances e poemas só aparentemente inocentes e escritos para o deleite, gerações inteiras foram formadas ideologicamente, foram confortadas com estereótipos negativos  e positivos que hoje ainda circulam na sociedade contemporânea, e desta forma, através do texto literário, identidades coletivas foram construídas assim como agora outras estão sendo reconfiguradas. 

Por isso, enquanto mediador do conhecimento, devo assumir responsabilidades pelo que ensino, questionando a relevância e a pertinência da literatura, pois é preciso

[…] indagar dela não apenas se representa um avanço ou refinamento técnico, se acrescenta um torneio de estilo ou se é hábil ao explorar o ponto nevrálgico do momento, mas também o que acrescenta, ou suprime, às minguadas reservas de inteligência moral. Que dimensão de homem tal obra propõe? Não é uma pergunta de fácil formulação ou que possa ser feita com tato infalível. Mas nosso tempo não é comum. Ele encontra-se sob o peso da inumanidade, sentida em uma escala de singular magnitude e horror; e a possibilidade de destruição não está muito longe. Seria bom dar-se ao luxo de ficar à margem, mas não se pode fazer isso (STEINER, op cit p 28).

Quanto ao poder transformador ou libertador da literatura, em cada indivíduo, é necessário lembrar que 

[…] Há evidência de que uma disciplinada e persistente dedicação à vida da palavra impressa, uma capacidade de identificação profunda e crítica com personagens ou sentimentos imaginários, diminui a proximidade as ásperas arestas das circunstâncias objetivas.[…] Acabamos reagindo com mais intensidade à tristeza literária do que à miséria perto de nós. (STEINER, op. cit.p.23)

     No entanto, consideramos que seja imprescindível, para o processo de humanização de cada indivíduo, que lhe seja garantido o acesso à Literatura, pois,  como nos lembra Antonio Cândido  :

Entendo por humanização o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para natureza, a sociedade, o semelhante (CANDIDO, 2011, p. 180). 

 Partimos do princípio que se torna urgente estabelecer uma diferença entre a leitura  tout court e o letramento literário. E começo por lembrar àqueles que, ainda presos à herança do Romantismo e que clamam por mais leituras, é preciso constatar que, se existe uma aparente crise do livre, entretanto, jamais se publicou tanto, jamais se leu tanto, como nos mostram os dados do mercado editorial. 

    De fato, em que pese o fechamento de livrarias, a venda de livros torna-se feita através do e-commerce, além do que, novas tecnologias permitem novos formatos do livro que deixa de ser unicamente impresso para tornar-se e-book, e que pode ser lido através de telas de computadores, Ipads, celulares, etc. Ou seja, o livro continua a ser publicado e a circular, desmentindo uma profecia que anunciava o fim do livro (GERVAIS : 2001, p.214). 

    É também importante observar que isto contribui, também, para destruir a ilusão dos poetas românticos que condicionavam o desenvolvimento da humanidade e do progresso espiritual do indivíduo ao número de livros que fossem lidos. Conhece-se, no Brasil, os versos de Castro Alves que se tornariam uma máxima:

Oh! Bendito o que semeia
Livros à mão cheia
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar  !

Isto porque, o mundo em que vivemos encontra-se, mais uma vez,  e cada vez mais, sendo empurrado para a barbárie, como nos mostram os cenários das sociedades europeias ou ocidentais mais desenvolvidas, com altos índices de escolaridade e de leitura. Cabe então aos profissionais da Educação e das Letras em especial assumir seu protagonismo para resistir ao avanço das forças obscuras que ameaçam dominar a sociedade, como nos lembra Adorno ao afirmar que 

A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. […]  Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo  enquanto persistirem no que têm de fundamental as   condições que geram esta regressão […](ADORNO : 1995 : p.119). 

Corroborando esta linha de pensamento, basta lembrar que, é exatamente, nos últimos dois séculos, que podem ser considerados os mais mortíferos da história – tanto pela dimensão dos conflitos bélicos quanto pelos sistemáticos genocídios ou limpezas étnicas, pelos apartheids (seja na África do Sul, ou na Palestina), sem falar da violência física e psíquica contra os imigrantes e os diferentes de toda ordem – que a escolarização das massas foi exitosa na maioria das sociedades ocidentais, provando a falência deste projeto civilizacional que se fundamenta na exclusão dos que se distanciam do modelo identitário padrão: branco, falocêntrico, monoteísta…

De fato,  o Outro parece ter se constituído durante todo o período chamado Modernidade  na «fonte de todo o mal» (DUSCHATZKY e SKLIAR, 2001, p. 119-138), quer seja por sua demonização, até negar a existência de diferenças entre as culturas, quer seja pela própria invenção do Outro, que passaria a ter necessidade de traduções oficiais; em suma, pelo estabelecimento de fronteiras vigiadas permanentemente e intensificadas por uma ética perversa da relação inclusão;exclusão. Enfim, pela oposição a todas às ideias de normalidade que possam escapar à lógica binária, para assegurar e garantir as identidades pretensamente fixas, centradas, homogêneas e aparentemente estáveis.

Sob a fabricação da opinião pública (LIPPMAN,2008), entre zumbificados e entorpecidos, homens, mulheres, adultos e jovens, passam a viver sob esta nova ‘religião’ onde pontificam o Deus Mercado e sua contraface a deusa Liberdade. Consolida-se e cresce a cada dia, em escala quase planetária, a rejeição às formas de associação humana baseadas no comunitário. Esta concepção encerraria   o temor de provocar o desaparecimento da Liberdade, tornada um fim em si mesmo, divindade maior  que jamais poderia ser contrariada (TODOROV, 2012). 

 Assim, pouco a pouco as ideias utópicas de uma sociedade igualitária e fraterna vão dando lugar a uma sociedade onde a liberdade individual deve prevalecer, tendo como corolário uma multidão de indivíduos que, sob os auspícios do império da mídia corporativa tende a se considerar cada vez mais como ‘únicos’ e ‘iguais’ sem jamais atingir a fraternidade, vivendo sob o peso da separatividade, pois                 

 A sociedade contemporânea prega este ideal de igualdade não-individualizada porque ela tem necessidade de átomos humanos, todos semelhantes, para fazê-los funcionar num vasto agregado, docemente, sem fricções; todos obedecendo às mesmas ordens, mas cada um estando cada vez mais convencido que segue seus próprios desejos. Assim como a produção moderna em grande série requer a estandardização dos produtos, assim o processo social requer a estandardização do homem, e esta estandardização se chama “igualdade” ( (BLOCH : 2005, p.6)

Observe-se que, sob uma potente e eficiente maquinaria de comunicação, difunde-se, em quase todo o mundo, a crença cega no chamado fim das utopias, exemplificada, de modo emblemático, pela quada do Muro de Berlim, A partir de então, tem início o sistemático descrédito na possibilidade de qualquer outra perspectiva histórica de construção de uma sociedade na qual os valores morais e éticos fossem outros que não os propagados pela indústria cultural. Seria o conformismo o preço a pagar para assegurar o reino da Liberdade que tem como contraface o deus Mercado, uma vez que 

A ideologia dominante é a ideologia do mercantil, temperada com um discurso humanitário. A mundialização surge no horizonte neoliberal de uma dupla polaridade, a da moral e a da economia. Por um lado a referência aos direitos humanos, por outro a obsessão com a produtividade, o crescimento e o lucro. A primeira serve à segunda[…]”.

 Assim, homens e mulheres, não importa sua etnia, raça, classe ou categoria social, abandonam quaisquer outros ideais que não seja o de ser mais um no conjunto dos conformados ou indiferentes, tentando incluir-se mesmo permanecendo nas periferias de um sistema em si mesmo excludente e que, por sua própria natureza, jamais poderá permitir a todos que participem do banquete da prosperidade. E, para que sejam evitadas rebeliões ou revoluções que possam ameaçar a ordem vigente, é preciso convencer,  de modo eficiente e eficaz que, se o paraíso não pode ser atingido é por  absoluta e exclusiva falta de mérito  cada indivíduo excluído. Assim, sob a opressão suave da opinião pública, pouco a pouco os indivíduos introjetam em suas consciências uma suposta certeza da naturalização de toda espécie de exclusão e, desta forma, miséria social, a distopia, o sofrimento ético-político   são vistos e vividos como ‘naturais’  (SAWAIA:  2012).

 Apreendido assim nesta ótica de dominação colonial, cada indivíduo em posição de subalternidade passa a se autodepreciar e termina por assumir uma suposta responsabilidade por todos os seus males, convencidos pela opinião pública que  apenas por absoluta e total falta de mérito não pode vencer o pesado círculo da exclusão e deve aceitar continuar amargando no purgatório da vida social. Assim, convencidos, homens e mulheres deixam-se ir, resignam-se, submetendo-se a esse novo deus chamado  Mercado, outro nome do Dinheiro,  já anunciado por Balzac em Le Père Goriot (1835).  

 Em suma,  podemos afirmar que a própria civilização ocidental vive um tempo onde impera o cinismo, que 

[…]  é a marca de uma época em que os aspectos de nossa vida nos parecem desconectados, fragmentados. O cínico é aquele que desvincula discurso de prática. Quando vemos que o cinismo tem se generalizado, isso indica que vivemos cada vez mais a experiência dessa desvinculação 

É importante ressaltar que uma das consequências deste horror econômico (FORRESTER, ) é a vida de solidão que faz com que os indivíduos vivam na mais completa separatividade (FROMM, ) sem poderem (re) criar e (re)elaborar vínculos de pertencimento e de solidariedade.

1.2.  Como deverei ler L’Espérance macadam, de Gisèle Pineau.

 Para fazer esta leitura, que é um ato de interpretação, de buscar extrair sentido do que se lê, como nos ensina ISER (1996), faço-o seguindo uma metodologia que indica a necessidade de articular discursos implícitos, ou explícitos no texto literário por seu caráter interdisciplinar ou transdisciplinar, como nos mostra a Literatura comparada, pois, como nos lembra Danielle Forget: 

 […] comparar pode ser visto como a apreensão de traços comuns inscritos em obras previamente trabalhadas, que são consideradas como investidas de um sentido associado que se trata de revelar, fazendo falar o texto,pois […]  trata-se (de fato) de estabelecer convergências de discursos, do literário aos outros discursos, como o social, o político, o antropológico,etc., que cada obra encerra em diferentes graus e em modalidades específicas ( FORGET, 2003, p.13) (tradução livre minha)

Cremos também ser importante fazer uma distinção entre o simples ato de ler, como decifração de signos,  e a leitura literária que implica a possibilidade de fruição estética, sem a qual o ato de ensinar a literatura torna-se uma atividade meramente mecânica e, como tal, dispensável, empobrecido, pois 

 Ler implica troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas também com a sociedade onde ambos estão localizados[…] Ao ler, estou abrindo uma porta entre meu mundo e o mundo do outro. […] Se acredito que o mundo está absolutamente completo e nada mais pode ser dito, a leitura não faz sentido para mim. É preciso estar aberto à multiplicidade do mundo e à capacidade da palavra de dizê-lo para que a atividade da leitura seja significativa. […] O bom leitor, portanto, é aquele que agencia com os textos os sentidos do mundo, compreendendo que a leitura é um concerto de muitas vozes e nunca um monólogo. Por isso, o ato físico de ler pode até ser solitário, mas nunca deixa de ser solidário. (COSSON, 2014, p. 27)

Cabe a quem ensina refletir tanto sobre o contexto de produção da obra literária quanto ao contexto de sua recepção. Que vantagens esta leitura poderia oferecer ao leitor? Isto implica,  necessariamente,  um acordo prévio entre professor(a) e estudante, e acima de tudo, implica em traçar objetivos prévios que orientem o ato de leitura e as razões pelas quais o ensino desta obra literária e não de outra está sendo proposto, ou seja, é incontornável a aplicação de critérios de pertinência e relevância na elaboração do programa de ensino da Literatura. Enfim, é preciso partir do postulado fundamental que, nesta tradição do realismo literário, a leitura literária, ao convocar os afetos, convida o /a leitor (a) a sair de sua zona de conforto e, assim, deixar-se com-mover, pois 

O movimento que a literatura desencadeia, de natureza catártica, mobiliza os afetos, a percepção e a razão convocados a responder às impressões deixadas pelo discurso, cujo único compromisso é o de co-mover o leitor, de tirá-lo do seu lugar habitual de ver as coisas, de fazê-lo dobrar-se sobre si mesmo e descobrir-se um sujeito particular. […] A porta de entrada para essas paragens do pensamento é, sem dúvida, a sensibilidade: não a que se confunde com uma torrente de lágrimas e soluços, mas a que desestabiliza, apurando a capacidade de perceber o que não é apenas óbvio, mas sublime. (YUNES, 2012, p. 27 )

Por isso, acreditamos que, quando possibilitamos mostrar, no ato de leitura, que sob a aparência da diversidade, sob a estranheza de cada personagem se esconde a mesma humanidade que habita cada ser humano, cada estudante poderá perceber que, em seu íntimo, produz-se o que se poderia chamar de despertar da sensibilidade, como um sopro sobre as cinzas onde adormece a esperança de um humanismo mais alargado e mais eficaz, uma vez que 

A literatura, nesta acepção que abarca narrativas de diferentes ordens mas que, com certeza, privilegia as que convocam os afetos, a sensibilidade, além da lógica e da inteligência – a meu ver – melhor serve para iniciar o indivíduo na aventura de ler e conhecer pela experiência de sentir-se diante do relato tomando partido, fazendo escolhas no exercício de tornar-se sujeito. Trabalhando com ela, é mais ágil atingir, pela observação dos vários modos de dizer, a tal consciência material da linguagem que constrói mundos com as referências que cria. Descobrindo, portanto, que com a linguagem podemos fazer muitas coisas, afetar de modo efetivo muitos sujeitos e a história. (YUNES, op.cit. p. 26)

2.  L’Espérance macadam, de Gisèle Pineau e a potência da literatura realista

Por isso, longe de crermos na leitura despreocupada, ou na quantidade de leituras como condição prévia para o crescimento espiritual e intelectual de cada indivíduo,  acreditamos que o/a professor/a de Língua e de Literatura deva, antes de tudo, perguntar-se: qual literatura ensinar e por que ensinar? E, por assim acreditar, posso  responder aos que perguntarem por que me interesso pelo romance L’ Espérance macadam, de Gisèle Pineau?  Porque esta narrativa se inscreve nesta maravilhosa tradição da melhor literatura realista do mundo em que o escritor/ a escritora  faz, ao mesmo tempo, o diagnóstico do mundo distópico sem deixar de indicar, claramente, como uma boa receita,  o que poderia curar as doenças da sua sociedade, ou seja, faz a correta prescrição do remédio para os males. E, não podemos esquecer que

Ler o realismo na Literatura, nestes tempos de capitalismo tardio em crise, é resistir ao espetáculo, é recuperar na arte aquilo que ela ainda pode fornecer de interesse permanente para um possível novo mundo. Não há utopia sem humanização e não poderá haver humanização sem a entrega sincera, livre e, por isso mesmo, política, dos homens à força reconciliadora da Arte. Portanto, qualquer hipótese de superação do capitalismo deve considerar a apropriação da grande arte pelas classes exploradas. (Alexandre PILATI In http://www.outraspalavras.net/2012/07/25/A-resposta-plítica-do-realismo (acesso em 02.8.2022)

2.1.  O diagnóstico da distopia social vivida pelos condenados da terra em Savane Mulet.

 Este panorama de um mundo que se ocidentaliza e se desumaniza em escala planetária e onde a humanidade é pressionada a se homogeneizar, onde homens e mulheres, jovens e adultos vivem sob a ditadura da moda (HELLER : ), impulsionados a se modernizarem a qualquer custo, pois passam a acreditar que « […] les cultures implicitement supérieures seraient celles qui valorisent et favorisent l’entreprise « individuelle », l’individualisme social et politique, par opposition à celles qui l’inhibent […] » (BALIBAR, 1997, p.39-40) é muito bem representado por Gisèle Pineau, neste romance que tem uma favela como cenário. 
                    A descrição da favela chamada Savane Mulet, em Guadalupe, perto de Ravine Guinée, uma nesga de terra onde proliferam as violências da natureza e dos homens”,  mostra que não é um lugar diferente da maioria das periferias das sociedades de capitalismo tardio,  não importa se asiáticas, americanas, ou também latinas ou caribenhas – onde a herança escravagista – escravização primeiro dos povos originários, depois dos africanos trazidos como escravos – deixaria suas marcas ainda hoje indeléveis. 

      A degradação do meio ambiente se conjuga àquela das vidas humanas. De fato, atirados à própria sorte, sem empregos formais, dispondo apenas de pequenos serviços para sua subsistência, sem terras para produzir, as personagens de L’Espérance macadam caracterizam-se pela indiferença pelo lugar  associada a uma mentalidade que diria sem esperança. E, renegando o passado (e a natureza é apreendida como um obstáculo a superar) vai tornar o lugar malsão: o rio que pela poluição se tornará seco, privando as lavadeiras de exercer sua atividade; no ar e em todo o espaço, desprende-se uma espécie de desolação moral e ética, uma falta de esperança e de crença no futuro, tornando o presente uma opressão.  

Nos primeiros dias, eles montaram suas casas entre as árvores, lá onde a natureza não tinha nada para plantar ou colher. ( EM, p.24). […]  Um dia, a matinha onde abundavam os guajurus se tornou Quartier-Mélo […] Os nativos de Ravine-Guinée murmuravam que Savane estava mais detrás das costas de Deus, mas no quarto mesmo do diabo, e que todos os demônios no exílio se encontravam lá, a bater as jogar cartas contra a gente honesta, bater o dominó e preparar o caminho da ruína[[…] » (EM, p. 25)

 É neste lugar distópico que os dramas de cada um vão se desenrolar, provocando angústias, decepções e fracassos. Paixões, ciúmes, traições, assassinatos, feminicídio, estupros e toda sorte de violência psíquica e físicas e sexuais contra as mulheres- desde  sua infância- são práticas rotineiras em Savane Mulet, espaço para onde acorrem uma multidão de sem teto e sem trabalho, desempregados, migrantes do interior como do exterior das Antilhas, e que vivem apenas da Assistência social do governo francês.

Chegavam de todo canto, bloqueavam pedaços de terra, plantavam casebres imundos…Gente jogada de todos os lados de Guadalupe. Famílias desembarcadas sem palavras que silenciavam até seus nomes. Mulheres caolhas, rosto mal costurado, mal remendado, uma prole enorme que não se podia contar na barra das saias, uma gaveta descarregada de uma carroça para cobrir a cabeça da posteridade.  Uma multidão, sim, caída sobre Savane Mulet, como os gafanhotos sobre a extensão do país de Faraó. Zumbis dos novos tempos. […] E depois, outras nações chegaram  das terras inglesas e espanholas do Mar do Caribe […](Tradução livre nossa)

Mas, como e por quê Eliette Florentine vai viver nesta favela chamada Savane Mulet? Antes de tudo, é preciso apresentar a protagonista deste romance: Eliette Florentine, é uma mulher negra, sexagenária, que, em 1989 volta a se confrontar com um Ciclone, tão ou mais ameaçador que aquele de 1928, quando, aos 8 anos de idade, perderia a memória, traumatizada pelo horror que lhe acontece e  que lhe faz perder a voz. Sua mãe, enlouquecida pela ação maléfica do que ela considera a Besta do Apocalipse, encontra na figura de Joab o apoio que necessita para continuar a viver e criar a garota traumatizada que somente aos quinze anos recuperará a fala, mas não a memória.

   Para fugir do cataclismo e da dor, para tentar reencontrar uma nova vida, Joab convida Séraphine e Eliette a se mudarem para Savane. Mas qual lugar é Savane para onde migram mãe e filha, levadas pela esperança de Joab que construir um paraíso na terra até então inexplorada ? Em Théories caraïbespoétique du déracinement (1996), Joël Des Rosiers  afirma que o nome Savane, feminino, remete diretamente à língua dos povos Taïnos que viveram no espaço original das Antilhas. Todavia, o sentido adquirido durante o processo de colonização europeia e o tráfico dos escravos tornou-se totalmente outro. Para um público francófono, savane remete diretamente ao espaço africano. Mas para o público antilhano, savane significa precisamente tanto o espaço da plantation quanto a savane de rafraîchissement, espaço  destinado para o repouso ou recuperação dos escravizados recém desembarcados, onde gozariam de uma relativa liberdade de locomoção. Savane, também, pode  remeter à praça pública de Fort-de-France, assim como a todos os pampas que cobrem as ilhas.

Claro que esse exílio será decorrente da fuga empreendida por Séraphine, que se distancia do cataclismo, e, assim, é também condição de sobrevivência, lugar onde se pode refazer sua própria vida, reelaborar os sofrimentos e do trauma, assim como pode se tornar também o espaço de acolhida onde se poderá reconstruir, refazer sua própria vida com facilidade e em segurança. Mas, não para  Eliette que se deixar levar, que não tem consciência do que lhe aconteceu. 

Se a amnésia, ou o esquecimento, funciona como uma alienação, isto é, uma maneira de condenar o indivíduo a não se reencontrar com seu seu, a se manter distante não somente da vida exterior, mas também distante de Si-mesmo, logo sem consciência de Si, mergulhado numa espécie de perda da consciência ou da identidade pessoal (LELOUP: ), pode-se acrescentar também uma outra espécie de alienação: o processo de educação, com a assimilação cultural que se cristaliza com a figura da professora de francês:                     

         Senhorita Meredith, uma velha professora diplomada. Mulher solitária talhada no figurino francês.  Com a mesma severidade  com  os carneiros sob seu mosquiteiro quanto com as regras da gramática, elaa ensinou Eliette o bom uso da língua francesa e as maneiras de um savoir-vivre universalmente certificado e eterno. Graças a sua disciplina, sua moral de aço e sua mente aprisionada num feixe de princípios, ela escoou uma camada de silêncio sobre os antigos medos de Eliette que perdeu ainda mais um fio de sua selvageria atrás dos gestos-macacos, sorrisos e saudações encomendadas, como vai você forçados e artificialmente elegantes.  Graças  a esta sábia aprendizagem, Eliette encontrou marido, aos trinta e cinco anos (EM. p. 106).(tradução livre minha)

Observe-se que a aquisição da língua francesa, língua de prestígio diante daqueles que apenas falam o créole local, torna-se razão de ascensão social com o posterior distanciamento dos outros, ou seja, com a ruptura dos laços sociais. Desta forma, o indivíduo pensa tornar-se menos distante de uma presumida verdadeira identidade (neste caso, seria o modelo francês), logo parecido ao Mesmo, e assim ele pensa escapar da sua posição de subalternidade na qual sua coletividade está mergulhada. Assim, ele pensa elevar-se socialmente  de onde o mundo seria visto de um ângulo diferente, onde ele se desembaraçaria de qualquer responsabilidade social.

Posto que aprender uma língua é também aprender a cultura da sociedade que a utiliza, neste processo de educação, Eliette aprende como ser diferente e como não ser ela mesma, presumidamente inferior, em sua  cultura caribenha.  Observe-se que a alienação é vivida em sua cotidianidade e provocada por “um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humana-genérica e a participação consciente do indivíduo nesta produção […] » 

Assim, Eliette está alienada, seu desenvolvimento psíquico e emocional não está completoe sua livre manifestação de sua individualidade se transforma num comportamento limitado pelos dogmas, os preconceitos e tabus. Prisioneira de um passado que ela não consegue decifrar, ela se fecha em sua própria casa, fecha-se para o mundo que a cerca, detestando tudo e todos aqueles que, como ela mesma, encontram-se também em situação de desvantagem em relação à vida:

Eliete não procurava nada mais nesta terra que a paz de sua casa. Nada de misturar sua existência na desordem de Savane. Nada de deixar sua mente colorir os sons, construir catedrais  de dores em seu coração. Olhos e ouvidos fechados, ela lutava para empurrar para longe a pena dos outros. A vida, lá fora, era um grande alvoroço de má sorte e “rogai por nós, meus irmãos!” (p.8)[…] Eu escutava e eu via, mas não me metia…Eu não deixava o som do Ka correr em mim, me arrastar para esta poça onde abundavam as misérias de Savane(EM p. 16).

 Este esfacelamento das antigas redes de solidariedade que se constituíram enquanto marcas do que se chama sociedades ditas primitivas, provocado pela modernização crescente, resultaria no isolamento de cada ilha “independente” em aparência, ou “autônoma”, e que recusa partilhar um destino comum, a pesquisa de soluções conjuntas, cada uma delas se mantendo  distanciadas d”as outras. É o que acontece também com os indivíduos tomados isoladamente, incentivados a se “modernizarem”,  a buscarem  a “liberdade individual” e desta maneira «[…] os Antilhanos são assim conduzidos a se negarem enquanto coletividade, afim de conquista uma ilusória igualdade individual. A assimilação complementa a balcanização […] » e, como também nos mostra Fanon ao observar que             

 «[…]E antes de tudo o individualismo. O intelectual colonizado  aprendera com seus mestres que  o indivíduo deve afirmar-se. A burguesia colonialista introduzira a golpes de pilão no espírito do colonizado a ideia de uma sociedade de indivíduos em que cada um se encerra em sua subjetividade, em que a riqueza é a do pensamento. Ora, o colonizado que tiver  a sorte de se entranhar no povo durante a luta de libertação descobrirá a falsidade  dessa teoria. […] O irmão, a irmã, o camarada são palavras proscritas pela burguesia colonialista porque, para ela, meu irmão é meu bolso, meu camarada é minha comilança. O intelectual colonizado assiste, numa  espécie de auto de fé, a destruição de todos os seus ídolos: o egoísmo, a recriminação orgulhosa, à imbecilidade infantil de quem quer ter sempre a última palavra […]» ( FANON, 1979, p.35)

Neste sentido, a personagem de Rénélien torna-se exemplar: 

(Rénélien) [qui]  era uma boa pessoa, mesmo se tivesse, a pontapés, expulsado  sua  primeira mulher de casa, pois […] Abandonando o francês que ele tinha jurado sempre usar com sua esposa legitima, Rénélien de repente reencontrou as maneiras do negro velho sem educação nem sentimentos. (EM. p. 107-109)  Sim, era sua culpa, reconheceu que, naquele dia, ele estava com fome, e um Negro que tem fome é como um animal: sua barriga se lembra do velho tempo da escravidão, da falta de pão e a raiva se levanta no meio de sua alma.(EM, p. 109-110) 

Desta maneira, sob o peso esmagador da cultura dominante que lhe é estrangeira, a personagem de Eliette vive de modo não-autêntico, tentando abafar o que, em seu íntimo, se constitui como uma forma “primitiva” de ser e de viver, pois aprendeu a ver o mundo numa lógica de exclusão, internaliza uma cultura que não é a sua e que a desqualifica como sujeito, pois «  […] a linguagem do colono, quando fala do colonizado,  é uma linguagem zoológica. Faz alusão aos movimentos répteis do amarelo, às emanações da cidade indígena, às hordas, ao fedor, à pululação, ao bulício, à gesticulação [..]» (FANON:   p.  35).

        Savane Mulet representa, para Eliette, o lugar onde ela deve se curar do esquecimento, onde deve recuperar sua memória perdida, liberar sua própria voz, contar sua própria história posto que a conhecimento que ela tem é aquela oferecida por sua mãe enlouquecida e que lhe aconselha a se controlar, a ser prudente, em outros termos, a viver de modo não autêntico, temendo a si própria e com medo de sua liberdade, curvada sob o peso da fatalidade de um destino inexorável:

Antigamente, quando sua mente encontrava um caminho de  Savane Mulet representa, para Eliette, o lugar onde ela deve se curar do esquecimento, onde deve recuperar sua memória perdida, liberar sua própria voz, contar sua própria história posto que a conhecimento que ela tem é aquela oferecida por sua mãe enlouquecida e que lhe aconselha a se controlar, a ser prudente, em outros termos, a viver de modo não autêntico, temendo a si própria e com medo de sua liberdade, curvada sob o peso da fatalidade de um destino inexorável:claridade, minha mãezinha dizia: […] Eliette, te segura!  Nem ri muito, nem chora demais […] Claro que tu perderás teus olhos tentando  contar as cabeças de alfinete que crucificam teus dias. Talvez que procures uma luz no teu passado apagado. Mas, no último momento, não haverá mais tempo de acariciar lembranças e lamentos, tu deixarás tudo isso sobre o bordado […] (EM p. 10) […] Eu sempre via  a doida da minha mãezinha sentada no banquinho revivendo Ciclone 28 que ela chamava A Besta! Quando ela dizia: Eliette, minha fia, vou te contar de novo A Passagem da Besta. […]. (EM, p. 16)  […]  Minha mãezinha Séraphine dizia que foi o Ciclone 28 que deixou o grande turbilhão em minha cabeça. Bastava um nada para eu atravessar os anos e me reencontrar, de novo, alegre, cinquenta anos atrás, na cozinha de minha mãezinha  (EM, p. 18)

E o trauma funciona como um outro exílio para Eliette e este também não depende dela, é involuntário e decorre de sua amnésia, da perda da memória que a atingiu pelo estupro praticado pelo próprio pai na noite do Ciclone 28. Cuidada por Éthéna e suas plantas medicinais, miraculosas, a garota vê seu corpo se reconstituir, não sente mais dores,  mas ela, ao não conhecer as razões deste mal, ela se manterá na ignorância, logo esquecida, em toda sua vida adulta,  tornando-a incapaz de estabelecer relações afetivas, de se dar, de abrir-se para o amor e para a solidariedade, enfim, incapaz de reelaborar o sofrimento para reorientar sua existência (CYRULNIK,2008). 

Olhando sem ver, fingindo não escutar, esquecida de si mesma, prisioneira em sua própria casa, recusando-se a participar da vida social de sua coletividade, fechada em si mesma, Eliette, no entanto, terá aspirações à maternidade. E este desejo a fará procurar uma vidente haitiana que lhe anunciará que  a vê cuidando de uma criança de seu sangue. Também este sonho de ser mãe, a fará superar as dificuldades de relacionamento que a impediram de ter uma vida amorosa.

Eliette jamais se revia com o mínimo sonho. Nada, nem ouro, nem glória, nem amor, nem ideal, ela    nunca tinha desejado coisa alguma. O desejo de parir a deixou com muito interesse (EM, p.02).[…] Eliette se lembrava ainda como, aos dezesseis anos, moça feita, ela choramingava por qualquer coisa, resistia a tudo o que pertencia ao mundo dos adultos. Bastava ver como estremecia diante dos machinhos raquíticos que assobiavam, buzinavam, usavam suas palavras em francês quando ela passava. Como ela corria longe dos homens! Eles a cortejavam, tocavam violão, buzinavam, a viam muito parecida às outras mulheres escaldadas várias vezes nos caldeirões de amor de Ravine -Guinée.  Ela rejeitava todos eles, ao contrário das outras donzelas das redondezas que perdiam seu crucifixo na emoção amorosa, ou que até escondiam suas calcinhas nas moitas do Dernier Coin Sauvage. Uma espécie de arpão a prendia no casebre de sua mãezinha (EM,  p. 104). (tradução livre nossa)

Mesmo se não podemos negar o caráter traumático provocado pelo abuso sexual sofrido por Eliette e que será responsável pelas dificuldades e constrangimentos que a impedirão de crescer, de conhecer o desenvolvimento psíquico e emocional, é inegável que, remetendo à cultura grega, base da cultura ocidental e da racionalidade, Éthéna, ao sedar a criança, aliviando o sofrimento físico, não possibilita o contato com a dor, impedindo assim o livre desenvolvimento do Eu e desta forma pode ter  condenado Eliette a ficar na fase egoica, vivendo apenas maquinalmente, recusando-se a assumir responsabilidades e a partilhar com os outros crenças, esperanças, projetos e valores. Assim, o bem trazido por Éthéna – e o nome, sublinhamos, remete à civilização grega berço da civilização branca europeia – vem acompanhado pelo esquecimento que é um obstáculo para o crescimento pessoal e espiritual que poderia ser reelaborado a partir do estupro e do próprio Ciclone, concebidos como manifestações do númeno, aqui entendido como:

     […] apreensão de um ‘’mysterium, tremendum et fascinans”, experiência de uma realidade, simultaneamente fascinante e aterrorizante que estaria na origem de todo devir espiritual e místico […] Além da lógica binária, funcionamento natural de nossas máquinas dotadas de “cérebro”, existe uma “coincidência oppositorum”; o “númeno” emerge desta coincidênia dos opostos. As reações emotivas são diversas: do simples terror à estupefação, passando pela surpresa, pela admiração e pelo maravilhamento[…](LELOUP:2001; p.171)

2.2. O PROGNÓSTICO: SOLIDARIEDADE E PERTENÇA COMO RECEITAS PARA ESCAPAR DA DISTOPIA

Em As três ecologias,Félix Guattari nos mostra a impossibilidade e a inutilidade de se esperar soluções exógenas para a crise em que a humanidade está mergulhada, sem que primeiro ocorra uma transformação em nível pessoal e individual:  

 Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos de bens materiais e imateriais. Essa revolução deverá concernir, portanto, não às relações de forças visíveis em grande escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo (GUATTARI, 2004, p.36-37)

Observe-se que, sob a omissão do Estado, vivendo na mais terrível solidão individual, os habitantes de Savane Mulet não conseguem encontrar saídas nem para a vida particular, muito menos para  a vida coletiva. Será preciso que as transformações necessárias para trazer de volta a utopia de uma vida  passem a ser aspirações individuais. Por isso, um gatilho deverá ser disparado. Vejamos como isto acontece na vida de Savane Mulet.
Seguindo sua vida rotineira, num domingo, ao voltar da missa, Eliette terá o primeiro contato com a realidade que se escondia sob seus olhos que não queriam ver, sob seus ouvidos que não queriam escutar, com sua afetividade que se escondia sob as couraças do desamor.

Voltando da igreja, numa manhã que já anunciava a chegada do Ciclone, Eliette vê, na viatura policial, detido, Rosan, o vizinho modelo de cidadão bem comportado, pedreiro, num universo de trabalhadores sem formação profissional, marido que não cometia violência contra a mulher, que não frequentava bares, não jogava, nem bebia, ‘cidadão exemplar’. Por quê?  Chegando em sua casa, Eliette passa a querer escutar e assim tomará conhecimento, ouvindo através das paredes frágeis de sua casa, a voz de Ângela, a filha mais velha de Rosan e Rosette, que afirma ter denunciado o pai à polícia por saber que ele, já cansado dela, iria começar a abusar sexualmente  a irmã caçula, Rita, que mal começava a puberdade. 

       É importante destacar que as transformações   no ethos  de Savane são impulsionadas tanto pela  ameaça da chegada do Ciclone, quanto pela revelação do horror da pedofilia. São duas manifestações aterrorizantes que desencadeiam uma série de consequências.  Assim, a narrativa nos mostra possibilidades abertas pela vontade humana de recriar e reelaborar os acontecimentos, logo de dar sentido aos atos, de superar as dificuldades, de não aceitar os aborrecimentos passivamente. E, desta maneira, os indivíduos vão depondo as armas do individualismo, vão vencendo o egoísmo e se engajam na ajuda mútua, o equivale a restabelecer laços  entre si e também com a natureza:

[…] E eles tentavam renascer irmãos e irmãs numa solidariedade nova que os espantava, os incomodava, claro. Na infelicidade que os unia, eles se descobriam nus e desarmados face aos cachorros doidos soltos pelo Ciclone […]Eles não podiam perder tempo com distrações, nem de se alegrar, nem ficar apertando as mãos, se beijando. Não. Era preciso pregar as portas e janelas.  Claro que tiveram tempo de aprender as palavras perdidas dos antigos.[…] Vizinho, tenho ainda três pregos! Toma! Aqui, uma tábua, também…. Deixa, que eu mesmo prego pra ti! […] Eles encontravam forças para subir e descer com os carrinhos de mão até o rio e carregar as pedras de formas alongadas como braços e distribuí-las nos traços de Savane, depositá-las sobre os tetos para que as tábuas  não voassem, Senhor, tem piedade! […] Ah, se Joab estivesse neste mundo […] certo que ele teria sorrido e aplaudido Savane, seu paraíso, a solidariedade e a amizade que as pessoas demonstravam. Ninguém reparava os destroços dos barracos que eles remendavam…Lixo de casebres lotados de miséria. Cubículos estreitos que apertavam famílias sem tostão. […] Na verdade, se não se olhasse muito de perto, livre do  desprezo dos abastados,  poder-se-ia acreditar que aqui e ali una nova vida estava sendo construída, com a esperança no coração, com o fervor dos braços e os sonhos em cortejo.(EM, p. 192-193). tradução livre minha.

Desta forma, na melhor tradição ancestral,  como “primitivos”, cada habitante de Savane descobre que, para salvar a si mesmo, ele tem necessidade de salvar o outro e, na categoria de Outro, ele descobre a natureza devastada. Começa, neste momento, a reconstrução da vida, o que implica também em restabelecer os laços do humano com o não humano, repensar as relações novas onde a lógica binária e de exclusão cede lugar a uma outra lógica, inclusiva, desta vez, pois o ser humano se descobre em sua inteireza, ele mesmo também animal, mas dotado de uma racionalidade que o faz superar os instintos e se elevar espiritualmente. 

A descoberta  das potencialidades é também o reconhecimento do valor do passado, a recuperação das tradições esquecidas, mesmo se devam ser reelaboradas, contextualizadas.  E o passado dos descendentes dos antigos escravos não se reduz apenas à escravidão que os fez virem para as Américas. O passado é também redescoberta dos antigos tesouros perdidos: a ajuda mútua como forma de vida coletiva, a fraternidade vivida não como um ideal a buscar, mas como condição para superar os problemas comuns da coletividade.

É que, se  a chegada do Ciclone,  traz o medo, também vai possibilitar a perda das ilusões mais banais, das fantasias mais mesquinhas, e assim  permite o desvelamento e que cobria os olhos, e cada um pode  se reconhecer no mesmo sofrimento e desta forma redescobrem a esperança. Enfim, os habitantes de Savane Mulet  vão reconhecer que podem construir uma nova vida sobre novas bases, com um novo pacto social, dependendo apenas da sua transformação individual, que se irradiaria coletivamente.

É esta mais uma leitura que se pode fazer deste romance realista  L’Espérance macadam, de Gisèle Pineau,  que traz a francização do créole  e a crioulização do francês, que enriquece a narrativa com elementos do mais puro realismo maravilhoso e que subvertendo as normas da gramática francesa tradicional, impregnando de oralidade o texto escrito,  mostra ao leitor, que, […] se tudo o que o mundo social fez, (armado de poder) o mundo social pode desfazê-lo, como nos lembra BOURDIEU ( 2005, p.19), pois  esta construção do imaginário social ocidental foi feita graças ao poder de convencimento da Literatura. É certa desta potência, que Gisèle Pineau denuncia os efeitos do individualismo exacerbado, ao tempo em que nos oferece as possibilidades de reapropriação da utopia como condição incontornável para a reconstrução de novos pactos sociais ancorados na solidariedade na pertença,

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