O banquete da gratidão: outras formas de celebrar a Paixão do Cristo na Bahia

O imaginário cultural dos povos católicos conhece bem o sofrimento ao qual a humanidade seria convidada coercitivamente a partilhar: do jejum de alimentos à abstinência sexual, todo o período da Quaresma, com o recrudescimento na chamada Semana Santa, somente o sofrimento deveria ser imaginado, vivido e pensado. De fato, o luto compartilhado pela morte e crucificação do Cristo deveria ser vivido, senão vivenciado, em todas as casas, por todas as famílias católicas e em todas as esferas sociais, no campo e na cidade: tristeza e compunção, privação, provações…

No entanto, talvez que seja na Bahia, em determinadas regiões desta Bahia tão grande, onde as heranças indígenas e africanas se fazem sentir mais fortemente, – recobrindo, em determinados momentos, a tradição católica europeia herdada dos portugueses,- que a “Semana Santa” antes um período de mortificação e sacrifícios dos mais diversos, de privação de prazeres com o culto da melancolia e vivência no luto, tenha se tornado um momento de celebração da vida, celebração da esperança, senão da certeza, mesmo, na ressurreição.

De fato, seguindo a própria orientação da Igreja católica, enquanto as famílias católicas de tradição europeia já viriam a substituir a carne pelo peixe, a herança cultural afro-indígena legou ao povo baiano a riqueza da farta culinária com seus sabores e cores que fazem a festa dos sentidos e dão prazer ao corpo, renovando energias para a luta diária que os “condenados da Terra” conhecem bem.

Por isso, cada família baiana, com suas tradições herdadas dos povos originários e dos africanos que aqui chegaram nesta dolorosa diáspora, realizam, com o pouco que podem dispor do muito que a natureza lhes oferece, o banquete da sexta-feira Santa, com peixes e mariscos que as águas dos mares e rios e lagoas lhes oferece. Banquete festivo, antecipando a certeza da ressurreição, celebrando o ressurgimento da nova organização depois do caos, da dor e do sofrimento vividos pelo Cristo.

É em gratidão ao Cristo que nos banqueteamos, que comemos a mais saborosa comida preparada com esmero e requintada simplicidade que só a herança africana sabe oferecer, e bebemos cerveja ou vinho. É por ele e com ele, o Cristo, agora que, graças ao seu sacrifício, estamos libertos das trevas, temos consciência de que podemos viver na luz que nossos bons atos poderão nos conduzir.

É assim que vejo a fartura sem riqueza nas mesas do nosso povo, nas nossas mesas, em cada sexta-feira, com fé e coragem dos que acreditam na possibilidade de uma vida melhor. É assim que cheios de fé e coragem celebramos a Páscoa na Bahia.

Publicado originalmente no Jornal A Tarde, Salvador, Bahia, 31/03/2024

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