OS BÁRBAROS ENTRE NÓS : Breve reflexão sobre  o fulgor do riso das hienas, o pálido sorriso das avestruzes e o tímido balido das ovelhas na pandemia, ou leitura(quase) semiótica de uma foto de aniversário.

A população brasileira, assim como em várias outras partes do mundo, pode ser classificada hoje em 1/3 hienas, ressentidos,  punitivistas e negacionistas, 1/3 avestruzes, tentando se convencer que não tem nada com isso, lavando as mãos na água suja da irresponsabilidade social, 1/3 de renitentes utopistas, humanistas resilientes…e 1/10 de combatentes incansáveis que não se inibem e atuam em redes sociais, ou na militância de partidos de esquerda, ou progressistas, em ONGs, ou outros movimentos sociais, alguns escrevem crônicas…

Seguindo uma orientação de Martin Buber, alemão, filósofo do diálogo e da utopia da Comunidade, tentarei exemplificar, traduzindo o que poderia parecer meros dados. E claro, desde já avisando que minha argumentação mesmo que pareça ingênua pode ser intelectualmente honesta como afirma Jacques Bouveresse, outro filósofo, só que francês.

Vejamos. Tomemos esta fotografia de uma família risonha –  já não confundo felicidade com riso, muito menos em pose para fotos- num fim de tarde de um sábado neste outono de pandemia, e que poderia se constituir uma cena banal de uma simples data comemorativa, não fosse a completa… ausência de máscaras como requisito para a prevenção contra a Covid! 

Não se trata de gente das camadas mais populares que a falta de escolaridade e de informação poderiam impedir de acessar conhecimentos valiosos que os mantivessem afastados dos perigos de um contágio. Não são pobres, nem moradores de residências precárias. Não.

 Uma leitura mais atenta da imagem nos mostra mulheres e homens bem vestidos, elas com acessórios que denotam uma certa sofisticação, numa sala larga e decorada com sobriedade. O pé direito muito alto indica também uma construção sólida e bem estruturada. 

Têm a pele clara, são quase todos brancos, mesmo se possam ser vistos como negros brancos deste Brasil mestiço, o que os ofenderia profundamente, se disso forem lembrados. Logo, os risonhos convivas em torno da mesa com guloseimas podem ser enquadrados nesta fluida categoria de uma classe média média urbana com livre acesso às informações e  com trânsito livre às fontes convencionais do conhecimento técnico -científico.

Por que estão sem máscaras, então? Se entre eles estão dois idosos e um bebê, logo alvos preferenciais desta nova peste que põe a civilização em choque e em xeque? E, o que é mais significativo, se dentre os convivas três ou quatro são profissionais da área de saúde?

São todos e todas hienas? Novo olhar para a imagem e podemos ver alguns sorrisos discretos que os olhos contestam, no que pode ser lido talvez como uma concessão, um aceno cordial, uma prova de boa vontade em partilhar, ou será mera submissão ou simples cumplicidade? 

Que esta interpretação é pertinente no caso dos idosos assim como na mais completa indiferença do bebê, impossível questionar. Mas, o centro da imagem, o protagonismo cabe todo às hienas que se travestem de alegres convivas, ou serão os anfitriões?

Mas como pode ser possível o que sempre foi inimaginável ou impossível de realizar-se, lado a lado num banquete contra natura, avestruzes e ovelhas veganas e hienas carniceiras? Dizem alguns africanos que há tempos em que até os loucos dão conselhos. Que dêem conselhos, já se poderia estranhar, mas que sendo conhecidos por sua loucura e ainda assim sejam escutados… só pode acontecer quando se vive em tempos perigosos!

Viver em tempos perigosos se caracteriza pela experiência pessoal e coletiva do cinismo em exacerbação do individualismo, quando tudo é visto, sentido e imaginado, enquanto fragmentado, ‘pontual”, sem vínculo algum de pertença ou solidariedade,  em completa separatividade, assim com cada qual se sentindo sozinho na multidão de “iguais”, na mesma onda psíquica, na mesma maneira de ser e pensar e se vestir, seguindo a “moda”.

Hienas, ovelhas e avestruzes estão momentaneamente em paz por razões básicas: fartas do banquete dos restos da prosperidade e de alguma abundância de um passado ainda recente, as hienas têm na dispensa um estoque de alimentos jamais vistos: do café da manhã, ao almoço ou ao jantar, fartam-se de carne e sangue de pobres, alguns brancos, mas pobres, e muitos corpos negros e afrodescendentes, majoritariamente jovens, e, para variar,  corpos indígenas para os festins de domingos e feriados, e a carne  mais procurada,  de gays e “comunistas”, para churrascos nos dias santificados.

Contentes, as hienas são condescendentes com as medrosas ovelhas e tontas avestruzes que trêmulas e fingindo inocência infantil, acreditam que possam ser poupadas de um provável e quase inevitável massacre, se e quando as hienas, levadas por seu conhecido caráter, num dia qualquer, não importa se em luminosa manhã ou noite de céu estrelado, resolvam desfazer o pacto e esquecerem, estes animais perversos, de quem lhes trouxe a tamanho poder.

De fato, mantidas à distância pela cerca eletrificada dos Marcos civilizatórios em construção acelerada depois de séculos, as hienas começaram uma violenta campanha midiática na tentativa de levar a desconfiança às mentes e corações das avestruzes e ovelhas, segmentos majoritários e sem os quais nenhuma mudança nas regras do jogo poderia ser pensada.E criaram um grito de guerra: quero meu país de volta!!!

As ovelhas que passaram a fazer fila para viajar de avião, ou que se viam disputando espaços nos shoppings centers com outras espécies desconhecidas, sentiram-se impressionadas com o que lhes pareceu um discurso corajoso: cada qual no seu lugar, já! Assim pensaram ter ouvido, assim passaram a balir, sob a insistência diária dos pastores: quero meu país de volta!

As avestruzes que já não podiam se distinguir de simples emas que agora insistiam em se vestir com plumas parecidas, e que já não podiam ter à disposição mão de obra barata para os trabalhos servis e domésticos, sentiram-se também solidárias e passaram a repetir o lema favorito: quero meu país de volta!

Aflitas e confusas, tateando no lusco fusco da consciência crítica, quase começando a compreender um dado exatamente quando veem escapar o seu significado, fraca a memória afetiva, quase nenhuma a cognitiva, as ovelhas entregaram aos pastores não apenas qual caminho seguir para atravessar as sombrias matas, mas também onde encontrar alimento e água, travessia segura nas veredas, encostas, penhascos, vales e ravinas, areias e praias.

Assim, embora mortas de medo ancestral,  apenas baliram, em discursos nervosos, sua inquietação crescente logo aplacada pela voz confortadora do pastor que lhes pedia fé e confiança e lhes garantia que, agora pós-modernas, conhecendo as plataformas mais avançadas do mundo virtual, superando as fronteiras do local e do imediatismo, as hienas, convidadas para derrotar o inimigo  que ameaçava  tornar-se hegemônico, lhes seriam gratas.

Para melhor serem convencidas, os pastores em coro entoaram cânticos celebrativos do fim da História, dos novos tempos do olhar focado só no que interessa, do pensamento otimista, da certeza da fidelidade de Deus e da absoluta necessidade de confiar cegamente na salvação cujos sinais estavam ali evidenciados na possibilidade inaugural, inenarrável da aliança com as hienas para derrotar o governo que ousava ampliar direitos, oferecer garantias de igualdade, tratar todos por igual, numa indecência republicana!

Entre balidos cada vez mais inquietos e  débeis, e aterrorizantes lembranças de parentes próximos estraçalhados por traiçoeiras hienas que fingiram rir ao se aproximarem, as ovelhas terminariam convencidas depois que, em outro inédito acontecimento, veriam, em carreatas, em ensurdecedor buzinaço, nas manhãs dominicais, avestruzes vestidas de cores nacionais, entoando o refrão que seria o mantra desses tempos: quero meu país de volta!!!

No entanto, somente depois de verem que as hienas passaram a usar fardas com as cores pátrias e garantirem outro mantra “nossa bandeira jamais será vermelha” é que a decisão de firmar o pacto pelo direito à liberdade individual acima da responsabilidade social, como direito inviolável, foi que as avestruzes, antes que voltassem   de novo sua atenção para os programas da TV Globo, concordaram em não impedir a entrada das hienas.

Sim, porque havia um muro de civilização, construído com argamassa do direito internacional, assentado sobre pedras de respeito e solidariedade, e sustentado com o ferro das lutas sociais, pintado com as cores da diversidade cultural de um país nascido da mestiçagem dos encontros de culturas e raças diferentes: vindos da Europa equipada com fortes tecnologias, os homens que viriam se apossar das terras que já eram ocupadas pelos indígenas brasileiros, e depois com a vinda  dos africanos negros que chegariam como escravizados e que seriam a maior força  de trabalho. Outros povos, de origens diversas, viriam se misturar depois.

Antes que, deliberadamente, dessem as costas ao mundo real, mergulhando no mundo da ficção do folhetim repetitivo e falsamente inovador das novelas da televisão, as avestruzes ainda convidariam as atônitas ovelhas para um ensurdecedor panelaço e a última manifestação nas avenidas à beira mar, ao som de trios elétricos carnavalescos e duplas sertanejas  em falsete: as ovelhas cederam toda a pouca e duvidosa resistência ante esse espetáculo.

Apressados em garantir seu lugar no novo mundo que pensavam estar construindo, ansiando perseguir algumas ovelhas desgarradas que fugiam dos apriscos, pondo em risco o princípio da autoridade, sem nenhum outro argumento, os pastores foram, juntos e lado a lado, levar a notícia da adesão das ovelhas à contra revolução liderada pelas hienas que, vestidas de verde e amarelo, enxugando as lágrimas na bandeira brasileira, entre uivos e risos, subiram a rampa.

Assim, passados os primeiros momentos de euforia, de alegres confraternizações diante de cada pedra da fundação arrancada, de cada pedaço de muro derrubado em nome da maior liberdade que passou a ser venerada como uma deusa, contraface do novo Deus instituído, o Mercado, com o avanço das hienas em espaços até então reservados, ovelhas e avestruzes se entreolham, e constrangidas, sorriem, sem máscaras, para agradar às hienas. E cada vez mais já não sabem qual é mesmo este país que agora pensam ter.  É isso. Só assim pode ser lida a imagem desta família reunida sem máscara, em dia festivo. 

18.11 2020

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *