Somente quando nos lembramos do horror das teorias raciais é que podemos reconhecer a grandeza, a relevância e a pertinência para nós brasileiros e baianos, negros e mestiços, da obra amadiana e em especial de Tenda dos milagres e da personagem mais instigante, mais humana e mais comovente da literatura baiana. Pois Pedro Archanjo é desenhando e moldado para se contrapor às teorias raciais, em especial, ao seu maior ideólogo por seu caráter de disseminador: Arthur de Gobineau que foi Embaixador francês na Corte imperial e que se admirava de como eram feios os brasileiros!
Transplantada das ciências naturais, a noção de raça seria utilizada para explicar o desenvolvimento das civilizações, da evolução humana através dos tempos, e, a partir de apropriações dos conceitos de mestiçagem e degeneração das espécies, intelectuais europeus passariam a temer que o entrecruzamento de raças e culturas, por seu caráter de ‘impureza’ gerasse indivíduos doentios ou fracos, cuja debilidade de caráter fosse incompatível com a noção de darwinismo social então em voga. De fato, sobre o Negro, Gobineau, o principal difusor das teorias raciais diria que
“[…] La variété mélanienne [à pigment de peau foncé] est la plus humble et gît au bas de échelle. Le caractère d’ animalité empreint dans la forme de son bassin lui impose sa destinée, dès l’instant de sa conception. Elle ne sortira jamais du cercle intellectuel le plus restreint[…] Si ces facultés pensantes sont médiocres ou même nulles,[le Noir] possède dans le désir, et par suite dans la volonté, une vigueur souvent terrible. Plusieurs de ses sens sont développés avec une vigueur inconnue aux deux autres races: le goût et l’odorat, principalement
Quanto à mestiçagem,Gobineau diria que, se num primeiro momento seus resultados não são nocivos, pois afinal, um elemento considerado “superior” é acrescido a outros considerados “inferiores”, e assim fortaleceria o que ‘naturalmente’ seria ‘fraco’, no entanto, isto contribuiria, a médio e longo prazo para que o elemento dito ‘superior’, no caso a raça branco-europeia, fosse pouco a pouco perdendo suas ‘melhores características’:
“[…] Le monde des arts et de la noble littérature résultant des mélanges du sang, les races inférieures améliorées, ennoblies, sont autant de merveilles auxquelles il faut applaudir. Les petits ont été elevés. Malheureusement les grands du même coup, ont été abaissés, et c’ est un mal que rien ne compense ni ne répare.[…] La race blanche possédait originairement le monopole de la beauté, de l’intelligence et de la force:.(os grifos são meus).
Morando no Rio de Janeiro, Embaixador francês na Corte imperial de Pedro II, Gobineau diria que os brasileiros eram incontestavelmente um povo feio, logo um resultado ruim da mestiçagem das raças. Aliás, para Gobineau e demais teóricos da pureza racial, toda e qualquer mistura ou mestiçagem teria como resultado a degeneração. Logo, o mestiço, o brasileiro típico era um degenerado, doentio, incapaz de progresso. Talvez por isso, durante muito tempo, décadas, talvez séculos, tenha-se pensado na impossibilidade de o Brasil vir a ser um grande país: pelo caráter mestiço do seu povo.
O certo é que, catalogadas de acordo com padrões eurocêntricos e numa escala que considerava a civilização branco-europeia como superior e, em graus tanto mais inferiores quanto se distanciassem do modelo dominante, asdemais raças eram hierarquizadas, tendo no topo a raça branca e na base, num estágio de total despossessão das coisas do espírito, os povos sem escrita e sem Estado, apreendidos como alteridade radical, exotismo, diferença a ser eliminada por sua absoluta estranheza. Sociedade marcada pela herança escravagista e pelo passado colonial, o Brasil despontava no século XX como uma nação condenada ao atraso econômico por sua população, avaliada como “débil ou doentia” por seu caráter miscigenado (BASBAUM: 1976, p 65-78).
É sob a sombra da suspeita de ser uma sociedade doentia que o Brasil desponta no século XX, com feridas ainda muito recentes de um passado escravocrata, com abismos sociais entre as classes e raças, onde predominavam tanto uma tentativa simiesca de copiar o estilo de vida da Europa, notadamente da França, quanto uma recusa da maioria da sua elite intelectual em aceitar a rica contribuição da herança cultural africana. Preconceito e racismo grassam na vida social de um país com vergonha de ser mestiço e desejoso de esconder as marcas étnicas que o faziam ‘impuro’, isto é, miscigenado.
Pour échapper à ce piège si grossier, Jorge Amado va dépeindre le personnage de Pedro Archanjo autrement. En fait, il va reconstruire dans son texte la formation de l’identité nationale en y insérant les Noirs et les Métis alors vus comme négatifs par leur « démesure », en opposition à la vision des classes dominantes représentées dans le roman par la figure de Nilo Argolo lequel défendait la thèse que le retard socio-économique de la société brésilienne était directement lié à la présence de l’élément africain et à son « mélange » avec le sang blanc-européen, «créant une race inférieure». C’est pour cela que Jorge Amado utilisera d’autres stratégies.
En fait, la dégénérescence alléguée et, par voie de conséquence, l’infériorité du Noir et du Métis diffusées dans la société commencèrent à s’inverser à partir de l’ébauche du portrait de Pedro Archanjo. L’importance soulignée des théories raciales ayant des incidences sur l’apparence physique, Amado construit un personnage dont l’aspect physique est remarquable par ses attributs moraux et intellectuels : Archanjo est un homme attirant, qui enchante et séduit les femmes ayant hérité de sa mère de la « douceur des traits ». (BM. P. 241) ; « […] c’est le plus bel enfant que je connaisse […] » (BM, p. 199) selon les mots de la comtesse de Agua Brusca qui le compare à Archanjo (ibid.), puis c’est encore Zabel qui trouve Archanjo « [un] mulâtre beau et fort[…] » (BM, p.198). En outre, on sait qu’il est courageux et intelligent pour avoir hérité de son père « l’intelligence et la vaillance citées dans les bulletins de guerre » (BM, 240), « […] son visage [est] tranquille et bon. » (BM, p. 280). La sympathie qui émane du personnage est déduite des affirmations, qui dans un passage ou un autre du récit, de façon éparse vont réaliser, positivement le caractère du personnage, faisant irradier cette positivité sur son corps : « le port altier » (BM, p. 143) ; « […] un mulâtre foncé, jeune et solide, […] » (BM, p. 273) ; « […] Don Léon appréciait chez le mulâtre la correction de ses paiements et de sa tenue, la propreté de quelqu’un qui sort de son bain ; son éducation le distinguait de la majorité des philosophes, en général des rustres penseurs, agités, sales, mal vêtus et mauvais payeurs.[…] » (ibidem), et lorsqu’il sera amené injustement à la prison, Damião de Souza criera « liberté pour l’homme bon qui jamais n’a menti, qui jamais n’a utilisé son savoir pour faire le mal, liberté pour l’homme qui sait et qui enseigne, liberté » (BM, p. 356).
Protagonista de Tenda dos Milagres (1969), ‘romance de tese’, escrito por Jorge Amado, Pedro Archanjo pode ser visto como um lídimo representante de um povo que, não tendo trabalho organizado, vivendo na penúria e na pobreza, consegue manter sua liberdade individual intacta na medida em que permanece livre dos grilhões que a moral burguesa estabelece como normas de conduta. De fato, fora do sistema de produção capitalista, desassistido pelo Estado, um povo inteiro, milhares de homens, mulheres e crianças, descendentes diretos dos antigos escravos africanos, vivem, no Pelourinho e adjacências, o que o narrador chama de “mistério primitivo”, tendo como contraponto a imponente Faculdade de Medicina da Bahia, “templo da ciência’, onde predominam as teorias raciais, considerandoo negro e o indígena como raças inferiores, e o mestiço dos entrecruzamentos sendo visto como degenerescência ou doença. Na verdade, são esses homens e mulheres que, por não terem preço algum a pagar, pois nada recebem do Estado – o qual, aliás, não lhes assiste, pois não lhes reconhece a cidadania – por isso mesmo podem vivenciar o que Albert Camus considerava uma “barbárie outorgada e fecunda” e que confirma a existência de uma outra forma de viver, pensar, sonhar e sentir que o avanço do capitalismo – com a racionalização do trabalho e a domesticação dos instintos – poderia neutralizar, esmaecer ou anular.
Pedro Archanjo constitui-se no mestiço a quem a narrativa investe de positividade, ao torná-lo detentor das qualidades da racionalidade que os intelectuais da tradição evolucionista negavam, e que tornava pessimista a perspectiva de desenvolvimento real do capitalismo na nação brasileira por ser mestiça. Com a construção desta personagem, Jorge Amado mostra a chamada reversão dessa expectativa. Ou seja, este herói mulato deverá reconstituir no texto narrativo (= retrato da nação) a formação da identidade nacional, inserindo a contribuição da herança africana, em oposição à visão das classes dominantes representadas no romance pela figura de Nilo Argolo, o qual, em 1901, num congresso no Rio de Janeiro, publica A degenerescência psíquica e mental dos povos mestiços – o exemplo da Bahia, defendendo a tese de que o atraso socioeconômico da sociedade brasileira estaria diretamente vinculado à presença do elemento africano e sua “mistura” com o sangue branco-europeu, gerando uma “raça inferior”.(NINA RODRIGUES, Os Africanos no Brasil.
Na verdade, o Archanjo é uma releitura que Amado faz da antropofagia. Falando corretamente línguas estrangeiras, com especial notoriedade para o seu “francês de Paris”, além do espanhol, do inglês e do italiano, na biblioteca de Pedro Archanjo há um considerável acervo da cultura ocidental: de Franz Boas e a nova interpretação sobre as culturas, de Alexandre Dumas a Gobineau, dos mitos gregos ao cordel. É esta sua bagagem cultural tão vasta, aliada ao agudo senso de realidade que o faz ser capaz de articular relações, que o leva a escrever seus quatro livros (A vida popular na Bahia- (1907); Influências africanas nos costumes da Bahia –(1918); Apontamentos sobre a mestiçagem nas Famílias baianas –(1920) e A Culinária baiana: origens e preceitos (1930), os quais, cem anos depois, vão despertar o interesse de um catedrático estrangeiro e que vem à Bahia, exclusivamente, para constatar as afirmações de Pedro Archanjo sobre a miscigenação das raças e das culturas, como fator positivo, para comprovar que “[…] É mestiça a face do povo brasileiro e é mestiça a sua cultura»(TM, p.98).
Por isso, de modo metódico, sistemático, a personagem de Pedro Archanjo será capaz de competir no meio intelectual, mesmo se (ou principalmente se ) contando com a ajuda divina, de Xangô, e da figura da branca-pobre Zabela, a ‘condessa de Água Brusca’, socialmente rejeitada por recusar os padrões da moral burguesa. Dois mundos, duas cosmogonias: o mistério primitivo e a ruptura da ordem estabelecida pela racionalidade ocidental vão confluir para possibilitar que Archanjo se aproprie das ferramentas necessárias para a transposição dos umbrais. E, para realizar a missão que lhe fora confiada pelos deuses afrobrasileiros, Archanjo deverá enquadrar-se na necessária disciplina, devendo abandonar a vida boêmia e malandra em que até então vivera. Portanto, se a narrativa aponta para o papel de mediador reservado a Pedro Archanjo, outro espaço ser-lhe-á conferido. E, para que possa desempenhar a mediação necessária entre os mundos, ele contará com forças sobre-humanas, que o farão ultrapassar as limitações do plano social e econômico. E quem vai orientá-lo, direcioná-lo para a tarefa que lhe esperava é Majé Bassan, a analfabeta, a que vive na oralidade, no ‘mistério primitivo”.
É que, numa clara ironia, Jorge Amado brinca com os preconceitos e faz com que a voz que chamará Archanjo ordem, que o disciplinará, que o incitará a cumprir sua obrigação seja a voz da guardiã, da detentora do patrimônio religioso, cultural e linguístico da tradição africana, a grande sacerdotisa MajéBassan. De fato, é esta Mãe de santo quem insistirá para que Archanjo passe da oralidade à escritura, preparando-se para enfrentar o perigo das ideias racistas, e abra caminho para um futuro que não seria tão remoto assim, e que deveria ser vivido por sua comunidade (p. 97). Portanto, se a narrativa aponta para o papel de mediador reservado a Pedro Archanjo, outro espaço ser-lhe-á conferido. E, para que possa desempenhar a mediação necessária entre os mundos, ele contará com forças sobre-humanas, que o farão ultrapassar as limitações do plano social e econômico. Eis o que ela diz:
« J’ai appris que tu dis vouloir écrire un livre. Mais je sais que tu ne le fais pas, tu ne le fais qu’en paroles, tu te contentes d’y penser. Tu passes ta vie à parloter à droite et à gauche, un bout de causette par-ci, un bout de causette par-là, tu notes tout, et pourquoi ? Tu vas rester toute ta vie commis des docteurs ? Rien que ça ? Ton emploi, c’est pour ton gagne-pain, pour ne pas mourir de faim. Mais tu ne dois pas t’en contenter et te taire. Ce n’est pas pour ça que tu es Ojuobá » (BM, p. 172)
Para tornar possível a missão de Pedro Archanjo os deuses lhe concedem dons especiais:
Uma versão circula entre o povo dos terreiros, corre nas ruas da cidade: teria sido o próprio orixá (Xangô) quem ordena a Pedro Archanjo tudo ver, tudo saber, tudo escrever. Para isso fizera-o Ojuobá, os olhos de Xangô. […..] Moço de vinte e poucos anos[….]Pedro Archanjo deu na mania de anotar histórias, acontecidos, casos, nomes, datas, detalhes insignificantes, tudo quanto se referisse à vida popular. Para quê? Quem sabe lá. Pedro Archanjo era cheio de quizilas, de saberes e certamente não se devera ao acaso sua escolha, tão moderno ainda, para alto posto na casa de Xangô: levantado e consagrado Ojuobá, preferido entre tantos e tantos candidatos, velhos de respeito e sapiência. Coube-lhe, no entanto, o título, com os direitos e deveres; não completara ainda trinta anos quando o santo o escolheu e o declarou: não pudera haver maior acerto- Xangô sabe os porquês.(sic) (TM: 70).
Maior entre os anjos, por isso, Archanjo, Pedro será assim visto por dois mundos diferentes com seus respectivos imaginários: de um lado, será apenas um ‘pobre, pardo e paisano’; de outro, um iluminado, um herói com halos de luz divina que tem por missão derrubar preconceitos e dar visibilidade social à cultura do povo negro-mestiço, resgatando orgulho e dignidade. Portanto, a incumbência de Pedro Archanjo é inserir na moldura do retrato da nação, outras figuras que, na visão amadiana, compondo a brasilidade, ficaram excluídas do retrato identitário nacional que as elites tentavam forjar.
Observe-se que, praticamente, ignorado em sua própria terra, depois de “descoberto” pelo “sábio americano”, Pedro Archanjo passará a ter seu nome veiculado pela mídia, recebendo elogios de quem até mesmo o menosprezava. Jorge Amado aproveita para brincar com o pensamento subalterno que caracteriza grande parte da intelectualidade dos chamados países do ‘terceiro mundo’ ou colonizados, onde os intelectuais, assim como os professores universitários, tornam-se orgulhosos comentadores, repetidores de teorias estrangeiras.
Na verdade, o autodidata Pedro Archanjo é uma releitura que Amado faz da antropofagia. Falando corretamente línguas estrangeiras, com especial notoriedade parao seu “francês de Paris”, além do espanhol, do inglês e do italiano, na biblioteca de Pedro Archanjo há um considerável acervo da cultura ocidental: de Franz Boas e a nova interpretação sobre as culturas, de Alexandre Dumas a Gobineau, dos mitos gregos ao cordel. É esta sua bagagem cultural tão vasta, aliada ao agudo senso de realidade que o faz ser capaz de articular relações, que o leva a escrever seus quatro livros (A vida popular na Bahia- (1907); Influências africanas nos costumes da Bahia –(1918); Apontamentos sobre a mestiçagem nas Famílias baianas –(1920) e A Culinária baiana: origens e preceitos (1930), os quais, cem anos depois, vão despertar o interesse de um catedrático estrangeiro e que vem à Bahia, exclusivamente, para constatar as afirmações de Pedro Archanjo sobre a miscigenação das raças e das culturas, como fator positivo, para comprovar que “[…] É mestiça a face do povo brasileiro e é mestiça a sua cultura»(TM, p.98).
Exemplo dos mais significativos do trânsito de Pedro Archanjo entre os mundos é o episódio do Terreiro Ilê Ogunjá. De fato,agonizante, antes de morrer, Majé Bassan, a grande sacerdotisa «[…] Mistura as línguas, usa palavras e frases iorubás,[…] » para transmitir a Pedro Archanjo “[…] a última lição, o ensinamento derradeiro […]» (p.167) que o consagrará como babalorixá. Desta forma, doravante será ele o grande sacerdote responsável pela tradição, o indivíduo capaz de conjurar os deuses, de fazer acontecer o axé, logo de fazer o enunciado concretizar-se, plasmar-se no plano do real.
Assim, quando o comissário Pedrito Gordo chega com a milícia para impedir as celebrações e destruir o terreiro, Pedro Archanjo perceberá que um resto de respeito e temor ainda brilhava no olhar do bandido mais perigoso, Zé Alma Grande ao entrar no espaço sagrado do terreiro, em plena noite de festa dos orixás. Assim,
« Adiantou-se o negro maior do que um sobrado.Ojuobá percebeu com os olhos de Xangô um átimo de vacilação no passo do facínora ao penetrar no recinto sagrado do Terreiro. Samuel Cobra Coral e Zacarias da Goméia tomaram posição, prontos para impedir qualquer protesto. Procópio prosseguiu na dança, era Oxossi,o caçador, senhor da selva, rei de Ketu.
Contam que, nessa hora exata, Exu, de volta do horizonte penetrou na sala. Ojuobá disse :Larioê, Exu !Foi tudo muito rápido. Quando Zé Alma Grande deu mais um passo em direção a Oxossi, encontrou pela frente a Pedro Archanjo. Pedro Archanjo, Ojuobá ou o próprio Exu conforme opinião de muitos. A voz se abriu imperativa no anátema terrível, na objurgatória falta!
-Ogun ka pê dan meji, dan pelú oniban !
Do tamanho de um sobrado, os olhos de assassino, o braço de guindaste, as mãos de morte, estarrecido, o negro Zé Alma Grande parou ao ouvir o sortilégio. Zé de Ogun deu um salto e um berro, atirou longe os sapatos, rodopiou na sala, virou orixá, no santo sua força duplicava. Ogunhê! gritou, e todos os presentes responderam: Ogunhê, meu pai Ogun!
-Ogun ka pê dan meji, dan pelú oniban ! – repetiu Pedro Archanjo:- Ogun chamou as duas cobras e elas se ergueram para os soldados!
Ergueram-se os braços do orixá, as mãos de tenazes eram duas cobras: Zé Alma Grande, Ogun em fúria, partiu para Pedrito […]». (p.195-196)
Pedro Archanjo sabe que o mito, mesmo se adormecido no coração do homem, mesmo se esquecido na alma, é capaz de despertar ante sua evocação. Desta forma, o antigo Zé de Ogun, que abandonara os terreiros para tornar-se criminoso, que repudiava as tradições do povo de santo, em plena batalha, vindo para destruir,termina por ser convocado ao serviço das divindades, voltando a assumir sua antiga identidade, e assim evita a destruição do terreiro e põe em fuga o comissário arbitrário, que será demitido da polícia, diante dos novos tempos que surgem no cenário social da Bahia que Jorge Amado descreve.
Pedro Archanjo é uma das mais instigantes e singulares personagens amadianas, talvez por se constituir, de fato, numa espécie de alter ego do próprio escritor, numa projeção das idealizações do papel do escritor, enquanto intelectual, e do próprio homem.
De fato, Pedro Archanjo é uma figura aparentemente paradoxal: irresistível sedutor, conquistador de mulheres, exatamente para provar o senso moral dos “negros, pardos e mestiços”- dos quais as teorias raciais alegavam a degenerescência,- no entanto, colocará a honra acima do amor e se negará a trair seu amigo-irmão Lídio Corró, deixando de amar a mulher dos seus sonhos, o seu verdadeiro amor, a “mais bela das belas, Rosa de Oxalá”. É que Pedro Archanjo, o invejável macho criado por Amado, é, na verdade, um homem sensível, que não apenas gosta, mas também ama a mulher, diferente do mito do Don Juan e seu fastio pela vida e desprezo pela mulher. Longe do conquistador compulsivo que se compraz no ato da conquista, na posse da “presa”, Pedro Archanjo é cobiçado, desejado, pelo seu jeito especial de ser, o que o distancia da figura tradicional do “macho predador”. As mulheres o amam em completa liberdade. Poder-se-ia dizer que o desejo feminino vai ao encontro do desejo do homem que é Pedro Archanjo. Por ele suspiram mocinhas e mulheres maduras, inexperientes donzelas e feridas mulheres da vida para quem ele, com delicadeza e firmeza,irá oferecer-lhes, não importa a idade ou o momento, o prazer de amar regado com delicadeza e erotismo, aliviando os sofrimentos do corpo e da alma.
« […] Pedro Archanjo, um retado na cama, e quanta delicadeza![…] (p.30) «[…]Ela adormecera a sorrir, no calor das doces palavras de ternura, tão boas de ouvir e tão desejadas. […] Rosália praticou em Alagoinhas, […] e Pedro Archanjo a encontrou no Terreiro de Jesus comprando laranjas. Só então Rosália soube com certeza que era um ser humanoe não uma coisa, um trapo, uma puta tão-somente […]». (p.153).
Lutando em favor do seu povo, como um guerreiro, e ao mesmo tempo como um intelectual ‘orgânico’, Pedro Archanjo profetizará as transformações sociais que a sociedade brasileira conhecerá, numa clara demonstração do poder visionário de seu criador, Jorge Amado, ao fazer seu herói narrativo afirmar que:
« […]Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta da capoeira, o samba-de-roda, os afoxés, os atabaques, os berimbaus, são bens do povo. […] Sou a mistura de raças e homens, sou m mulato, um brasileiro. […] Amanhã […] tudo já terá se misturado por completo e o que hoje é mistério e luta de gente pobre, roda de negros e mestiços, música proibida, dança ilegal, candomblé, samba, capoeira, tudo isso será festa do povo brasileiro, música, balé, nossa cor, nosso riso, compreende? »(p.201).
Enfim, onde tudo era dividido, só Pedro Archanjo-, filho de um pai que não o conheceu e de uma mãe que o deixaria órfão ainda criança,- esta personagem que se entregava nos terreiros às divindades, que lia tratados, que debatia com os intelectuais da tradição branco-europeia, que nascendo em 1868 já não mais conheceria a escravidão, vivendo num tempo onde tudo parecia excludente, bipolar, só Pedro Archanjo-Ojuobá foi inteiro :
«Não se dividiu em dois, com hora marcada para um e para outro, o sábio e o homem. Recusou subir a pequena escada do sucesso e alcançar um degrau acima do chão onde nasceu, chão das ladeiras, das tendas, das oficinas, dos terreiros, do povo. Não quis subir, quis andar para a frente e andou. Foi mestre Archanjo Ojuobá, um só e inteiro» .(sic) (p.141)
Longe da imagem do “degenerado”, ou “impuro” ou doentio, Pedro Archanjo, idealizado pela generosidade de Jorge Amado, torna-se uma personagem emblemática em sua inteireza, dotado do tão desejado equilíbrio buscado pela tradição filosófica do ocidente e da sabedoria do Oriente. Como nos versos de Fernando Pessoa, essa personagem emblemática é de tão grande inteireza que se poderia dizer que “ …como a Lua, de tão inteira vive nua…”, num perfeito equilíbrio entre razão e emoção, ciência e fé, na justa medida.
Referências
ADORNO, Theodor W. “Educação após Auschwitz”. In: Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. São Paulo: Martins Fontes, 1969.
AMADO, Jorge. La boutique aux miracles. Traduzido por Alice Raillard. Paris: Editora, 1976.
AMADO, Jorge. Bahia de tous les saints. Traduzido por Michel Berveiller e Pierre Hourcade. Paris: Gallimard, 1938.
AMADO, Jorge. Jubiabá. 1935. Referência incompleta.
BARROS, José Flávio Pessoa de. Mito, memória e história: a música sacra de Xangô no Brasil. Disponível emhttp://www.rizoma.net/interna.php?id=156&secao=afrofuturismo
BASBAUM, Leôncio. História sincera da República: das origens a 1889. 4. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1983
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1979.
FANON, Frantz. “Racisme et culture”. In: Présence Africaine.Comte Rendu du 1er Congrès International des écrivains et artistes noirs. Paris: Sorbonne, octobre, 1956.
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 25 ed. Rio de Janeiro: Editora, 1987.
GOBINEAU, Joseph-Arthur de. L’inégalité des races humaines. Disponível em:http://www.philo5.com/Les%20philosophes%20Textes/Gobineau_InegaliteDesRacesHumaines.htm
LÉVI-STRAUSS, Claude. Race et histoire, race et culture. Paris :Albin Michel, UNESCO, 2001.
LOPES, Helena Teodoro; SIQUEIRA, José Jorge; NASCIMENTO, Maria Beatriz. Negro e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: IBRADE/UNESCO, 1987.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
QUEIROZ FILHO, Teófilo de.Preconceito De cor e a mulata na Literatura Brasileira. São Paulo: Ática,1975
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1999.
SANSONE, Livio. A internacionalização da cultura negra. Novos Estudos CEBRAP, n. 56, p. 111- 136, mar. 2000.
SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos?São Paulo: Brasiliense,1984.
Resumo
Contrariando as teorias raciais que condenavam o mestiço como incapaz, doentio ou “anormal”, Jorge Amado, em Tenda dos Milagres (1969), expõe seus conceitos de mestiçagem e de cultura brasileira, a partir da realidade da Bahia, “berço do descobrimento do Brasil”. E, para ilustrar este novo paradigma, o escritor baiano cria Pedro Archanjo- Ojuobá, “pardo, pobre e paisano”, intelectual orgânico. Altivo sem arrogância, macho sensível, corajoso e não-violento, Pedro Archanjo-Ojuobá é mediador de mundos e fazedor da paz, mesmo sendo um valente guerreiro. Como nos versos de Fernando Pessoa, essa personagem emblemática é de tão grande inteireza que se poderia dizer que “ …como a Lua, de tão inteira vive nua…”, num perfeito equilíbrio entre razão e emoção, ciência e fé, na justa medida.
Palavras-chave: Cultura, identidade, Pedro Archanjo, mestiçagem, Bahia.