Quando aquele que lhe parecera talvez fosse o último resolveu partir, e diante da decisão do velho comandante em se declarar impedido, ela pensou não lhe restar outra opção senão assumir o comando, aprender a ler mapas e aparelhos para interpretar o movimento dos ventos, o som por vezes aterrador do barulho das ondas batendo no casco desse navio chamado casa que lhe parecia ameaçado por intempéries. Por isso se recusa a ser censurada, sequer cobrada, pois tudo, tudo o que ocorrera tinha lhe parecido bom, razoável e salutar, verdadeiro instrumento que trazia o paliativo para suas noites vazias. Reconhecia sua responsabilidade por essa situação que agora lhe embaraçava, mas Deus e ela bem sabiam o quanto tinha sido doloroso atravessar as manhãs reluzentes de um sol que desnudava sua solidão a cada amanhecer, sob os olhos de todos, pois lhe parecera mesmo que todo mundo lhe cobrava o que se constituía de fato numa espécie de aparente injustiça da vida, ou segundo alguns, sua evidente incompetência. Pior ainda fora vencer as tardes de calor, sob o sufocante mormaço, vazias de sentido, tardes nuas de esperança, desnudas de qualquer promessa que lhe pusesse ânimo ao viver.
Que não a julgassem, agora. É verdade que sente um certo rubor, mas aprendeu a desviar o pensamento, a recusar pousar o olhar na ferida aberta, a desviar seus olhos para longe dos temores de modo quase astuto, e assim tem sabido driblar os julgamentos que a assaltam como atacantes em campo.
Por isso, enquanto o amor não lhe batera à porta, não vira nada de mal em continuar partilhando de algumas intimidades mais leves do casal de tripulantes. Que não viesse agora lhe julgar quem não conhece a miséria da solidão de uma mulher ainda jovem e bonita, sim, era bonita mesmo, sabia disso, acaso não tinha espelho? Quem melhor do que ela sabia arrumar-se, realçando as formas do seu rosto sem rugas, destacando as curvas sinuosas do corpo sem parecer uma qualquer? Mas ela conhecera a penúria de amor. Arrepios riscavam sua espinha dorsal até a nuca, quando se via no canteiro, sob o calor do sol dos verões escaldantes, metaforizada nas rosas que ressecavam, murchando velozmente, esmaecendo antes mesmo de encantarem a todos com seu viço.
Foi assim que chegara até mesmo a achar graça, vendo tudo aquilo como um tempero novo para a sua jornada de solidão, um condimento para o insosso cotidiano temperado só de carências. Pois só Deus e ela podiam bem avaliar a vida de uma mulher sensível e jovial, que via rondar a curva dos trinta, saudável, e financeiramente bem sucedida, e que, no entanto, não conhecia a graça de amar como achava que um dia amaria. E que sentia, no fundo da alma, embora jamais enunciasse em voz audível, que a solidão é miséria afetiva, extrema pobreza negativa do ser. Ser que se sente predestinado a entregar-se, a doar-se e a receber. Por isso, fingia não ver certos detalhes. Tornara-se míope, ou o que é mais importante: aprendera a ver sem olhar? E vira o que precisava ser visto. Nada demais. Nem de menos.
Olhando em torno de si, que vira além de outros tipos de carências? Se uns careciam de grana que não lhe fazia falta; a outros faltava a coragem que ela tinha de sobra. Ainda havia quem o medo de amar impedia de crescer, vendo-se eternamente criança assustada, precisando de proteção e afeto. E o mais importante, o foco essencial naquele afresco: os que não podendo sustentar-se nas próprias pernas, gostando de dar largas passadas, traziam nas costas cargas não muito leves. Sob a grande embarcação tornada lar, ela imaginou a cidade como um mar revolto e a tripulação ela a viu sem experiência. Reparando bem e guardando as devidas proporções, chegou a pensar que aquela gente reunida no que ela chamava de viagem marítima, um mundinho que julgava conhecer muito bem, navegava por um mar turbulento, numa nau à deriva, e se insensatos não eram, padeciam de uma perigosa inocência. E foi então que sentiu que podia dar um sentido à sua própria existência, tentando encher de colorido sua vida condenada ao marasmo: resolveu tomar nas mãos o leme, tentando conduzir a embarcação para longe dos recifes e dos bancos de areia que podiam ser vistos a olho nu.
Sua maior preocupação, contudo, era com o que lhe pareceu ser a parte mais frágil de toda a tripulação e que era representada no jovem casal envolto numa aura de perigo que podia ser percebida pela aparente fragilidade das relações que deviam, no entanto, firmar os laços de união. Pois ela via que se uma das partes parecia gozar das delícias do que se insinuava como um descompromisso do viver, uma despreocupação com a hora de chegar e de sair, e até mesmo com o esquecimento de datas importantes, ou sendo ainda mais explícito, com a amnésia que levava à mais banal ausência da mais simples demonstração de carinho que é capaz de fazer ceder a vontade de uma mulher, ou dito de outra forma, ele parecia não estar nem aí pra sua amada. Por outro lado, sinais de plena irritação e impaciência não eram mais sequer escondidos, o desviar-se do olhar, as comissuras dos lábios se torcendo, um gesto de desdém ante um toque vindo com um pedido de desculpas… Sem falar do pranto da garota que se achava desiludida ante o retorno do marido, sempre mais tardio e menos frequente e mais pleno de fadiga das impossíveis rudes labutas. Um desastre. Claros sinais de um iminente soçobrar da embarcação.
Foi assim que ela se viu responsável pela navegação daquela nau à qual era preciso dar um rumo. Ela sabia que ruas tinham grude, atrações suficientes para manterem enfeitiçada a atenção de um rapaz ainda sem vocação de esposo, ou brincando de ser casado, como se dizia a boca pequena. Então, não seria o caso de dar, em casa, o que ele continuava buscando lá fora? Se fosse com ela, o que faria? Olhando o mar ao longe,com ondas que decerto se quebrariam numa imaginária ilha, mesmo não vendo a espuma se apagando nas areias, ela não podia antever os seixos que ficavam na praia? Assim não seriam também as consequências de todos os atos? Prever para providenciar. Com o cálculo frio e matemático ela teceu a urdidura do seu plano. Primeiro, conferiu o saldo do seu cartão de crédito. Viu que ainda tinha muito, o suficiente para o que chamou de alguns investimentos básicos. E foi à luta. Foi avaliando o que ela calculou como possíveis danos materiais e também morais que ela resolvera sair da imobilidade e decidiu agir. Sem dizer uma palavra, lembra-se que pegara a chave do carro e partira para o shopping.
Quando retornou no início da noite, carregada de pacotes e sacolas de lojas, algumas até mesmo de grife, sua excitação era maior que o cansaço. Chamou a chorosa jovem esposa em particular e lhe fez ver as suas novas responsabilidades a partir daquele dia, se quisesse, de fato, evitar o naufrágio que a ninguém devia interessar. Mostrou-lhe o significado da palavra ressignificação. Fez-lhe ver a dimensão exata do conceito de superação. E fez um pequeno discurso apaixonado sobre a beleza do conceito de família. Da necessária abnegação, da paciência e do amor, sim, do amor, que tanto fazia falta ao mundo todo e que a insatisfeita esposa inexperiente estava deixando escapar. Que enxugasse o pranto. Como deixar que ele, o marido, chegando em casa depois de tantas atrações lá fora, encontrasse um clima de sofrimento, ou de aborrecimento? Não, a partir de agora tudo deveria ser diferente. Que lhe permitisse ajudá-la. E mostrou as compras: roupas novas e insinuantes, as peças íntimas apelativas embora ainda longe do ridículo, mas fazer o quê se era preciso reacender os desejos que decerto estavam adormecidos sob os respingos da chuva, ou das ondas muito altas que chegavam ao tombadilho chamado casamento? Para o despreocupado jovem marido, ela trouxera também os primeiros presentes do que, décadas após, continuaria a oferecer como uma renovação quase constante de um compromisso mútuo:o bom comportamento dele seria sempre reconhecido por um regalo, um mimo que lhe encheria o guarda- roupa e o faria destacar-se dentre seus iguais.
Se ela tivesse de salvar seu próprio casamento, se um dia casada tivesse sido, seria exatamente como tentara salvar aquela relação dos dois jovens que pareciam perdidos em seus mundos tão diferentes, sob ondas muito altas, sempre ameaçando soçobrar a frágil embarcação do amor. Que não lhe viessem, agora, censurá-la. Que mal fez, do que deveria envergonhar-se se todos os seus pensamentos eram para consolidar uma relação afetiva que geraria belos frutos? Bem verdade que tivera de sacrificar-se muito. Mas fora melhor do que manter-se inativa vendo passarem as horas, correrem os dias sem nenhum prenúncio de alguma esperança no horizonte mais longínquo. Era inegável, também, que para reavivar os laços que se achavam prestes a se partirem ela teve de convencer a jovem esposa das vantagens inquestionáveis do esposo aparentemente simplório e com aresde eterna infantilidade. Então se viu capaz de ousadias jamais empreendidas na vida pessoal. Aprendeu a ver sem olhar e a descrever o que apenas intuía, segundo gostava de dizer. Foi assim que viu os claros sinais de vitalidade de um grumete disponível e despreocupado que dormia e acordava no tombadilho coberto apenas por um leve pijama de seda que ela própria providenciara. Destacou os contornos dos músculos apenas entrevistos, condições prévias para o exercício do viver em alto mar, marinheiro pronto a desembarques imprevistos. Assim ela se viu anotando, para a distraída esposa, características da tripulação, formas, contornos e…aptidões. Realçou dimensões que considerava invejáveis, patrimônios até então insuspeitos aparentemente escondidos e invisíveis e que estavam ao dispor da feliz e inocente consorte que, por sua vez, aprenderia a ver o que agora estava sinalizado, no que ela chamou de alfabetização do amor.
Quando ele se envaideceu demais e tentou conquistar outros mares, ela não se fizera de rogada e não se atirara nos seus braços, pedindo-lhe que, olhando-a nos olhos, prometesse jamais repetir tamanha desventura, abandonando a rota que juntos, os três haviam traçado, numa verdadeira traição não apenas à jovem mulher, dedicada e amorosa, mas também a ela própria, abnegada, que se oferecia sem se dar, como uma segunda esposa eternamente prometida, in pectore? Como ele podia fazer isto com ela, a princesa dele, a guardiã do lar? Que ele se bastasse com apenas as duas mulheres que já possuía: a esposa real e fiel, e ela, a vestal intocada e eterna enamorada a quem o contato físico não se fazia necessário tão grande era o sentimento, o amor sublimado? E se colocou assim, de coração aberto e olhar febril, como uma segunda esposa cujo matrimônio jamais seria consumado. E para selar este novo pacto, até então apenas tácito, ela entregou-se, quase trêmula, muda de emoção, prestes a perder os sentidos, ao vigor dos braços pouco afeitos ao ritmo dos remos, e por isso mesmo cheios de energia acumulada, com que ele, num amplexo inesquecível, a sustentaria. Nada mais.
Claro que também tivera seus prêmios de consolação. Uma palha não se arredava se não fosse com sua anuência. Nem mesmo as noites mais tórridas seriam vividas sem sua contribuição. Do vestuário à escolha do motel, nas comemorações de aniversário de casamento, ou dia dos namorados,a última opinião não fora sempre dela? Que se bastava em saber dos arroubos dos jovens enamorados, que se sentia enrubescer ante as imagens que circulavam teimosamente em sua mente apesar da vontade deliberada de olhar ao longe, de pôr o olhar ocupado com a linha do horizonte. Nas noites sem estrelas e com vagas luminescências ao longe, acordada pela solidão amarga, ela se sentiria desfalecer ouvindo bem perto, no convés da sua embarcação, os sons nem tão nítidos que pudessem ser pormenorizados, nem tão abafados que passassem despercebidos. O amor palpitava, vencia as trevas, seguia o rumo traçado. E ela sentia, verdadeiramente, como era grande sua contribuição para o navegar seguro do navio cujo leme trazia nas mãos.
Jamais permitira, no entanto, demasiadas licenças. Não. Soubera manter uma distância quase discreta, imperceptível aos olhares dos demais tripulantes, ocupados demais em se verem bem cuidados. Que pareciam satisfeitos em saber que a embarcação navegava agora sob a condução firme e experiente, e dedicada, além do mais, pois seus esforços eram visíveis. Uma aura de reconhecimento do seu talento e de sua abnegação lhe recobririam a reputação, numa blindagem eficiente, capaz de evitar o choque de obuses da maledicência alheia, ou da indiscrição dos olhares domésticos. Sabendo que se obtém quase sempre o oposto do esperado, numa estranha ironia das divindades, ela que não acreditava muito em muita coisa, soube que quanto mais se escondia mais se mostrava, por isso evitava qualquer situação embaraçosa que pudesse comprometê-la. Sem, no entanto deixar de usufruir dos prazeres mínimos que ofereceriam o necessário condimento para o insosso existir.
Assim, pode apreciar refletida no espelho a nudez entrevista sob a espuma do sabão, num relance, no momento exato onde, adentrando o quarto do casal, ele se banhava sob os olhares da jovem esposa, e sem muito pudor, quase querendo de fato mostrar-se em sua força juvenil, de viril exemplar de uma masculinidade indubitável, olhou-a com um meio sorriso enquanto ela, lançando o olhar ao longe, lhes dava bom dia e saia cantarolando, um arrepio no dorso. Os dois lá ficariam, a falar do tempo,em voz alta, tentando anular qualquer dúvida, apagar quaisquer vestígios, espantar receios, como se assobiassem na noite escura. Tempos depois, ela própria não faria muito para impedir que fosse vista enquanto se trocava, demorando a colocar o sutiã, deixando à mostra o corpo escultural que o tempo não castigara, apenas entrevisto pelo espelho. Por quanto tempo as formas foram adivinhadas numa meia luz, aparente lusco fusco? Todo esse tempo não fora vivido nessa espécie de vaga luminosidade que clareia sem alumiar, nessa longa noite de lua que as nuvens insistiam em recobrir? Não fora assim que conseguira conduzir essa estranha embarcação a um porto sempre à distância, todos esses longos anos? Ela jamais se negara a ver a coragem com que, semidesperto de inenarráveis batalhas, ele trazia ainda erguidas as armas de sua pretensa valentia em certas auroras. Se isto lhe dissera alguma coisa? Se gostara de ver os segredos das cabines sem portas dessa embarcação que ela conduzira? Moeda de troco. Ninharias. Nada mais.
Por isso, quase duas décadas depois, agora que encontrou o amor que nunca julgara de todo perdido, mas que se esquecia de aparecer, hoje que quer se dedicar inteiramente a esta sua nova existência, não pode esconder uma sensação de perigo que a faz piscar, nervosamente, que lhe deixa um pouco nauseada diante do que pareceu inconveniências do hoje não mais tão jovem esposo, mas que permanece alegremente descompromissado, e que insiste em brincar com coisas sérias, numa atitude perigosa de criança pirracenta, ou numa velada ameaça de quem se sente traído, pois ela já não precisa mais das gentilezas e dos galanteios até melosos que dele recebia. Por isso,teme que ele, não muito capaz de esconder no rosto o que lhe vai na mente, ponha por terra o delicado desenho do percurso que ela, para salvá-lo de si mesmo, traçaria como trajeto da embarcação muito frágil na qual ele, sem aparato algum de proteção, embarcara ao se casar sem condições, trazendo como dote único um corpo rebelde às convenções, sem equipamento de salvação, num navio açoitado por tempestades.
Embora não consiga mais deixar de trazer franzido o cenho, ela sabe que poderá, ainda, outra vez, tomar em mãos a embarcação que se chama sua vida e conduzi-la a porto seguro. Precisa apenas refletir. Necessita apenas tecer novos trajetos, avaliar os perigos da nova rota, oferecer um outro butim a prováveis tripulantes amotinados. Ou, até quem sabe, mesmo se lhe doesse tanto, atracar a embarcação e mandar descer os rebelados? Ela só tem certeza, mesmo, embora não consiga deixar de sentir arrepios no ventre, que ainda é capaz de conduzir a porto firme não mais todo o navio, como antes, mas o bote salva-vidas em que deseja preservar o seu amor dos perigos dos recifes de coral e dos bancos de areia tão próximos do seu olhar. E ante a pergunta que lhe cobra sobre a validade do seu sacrifício e da sua audácia, um não existindo sem a outra, ela se recusa a responder, pois aprendeu a ver sem olhar, aprendeu a lançar ao longe numa linha de um imaginário horizonte qualquer dúvida que por ventura lhe venha à alma. É que antes ela não tinha encontrado o amor. Somente por isso, ela se perdoa a si mesma.
Humberto de Oliveira