REENCANTAMENTO DO MUNDO PELO AMOR: LEITURAS DE ESTRATEGIAS DE LIBERTAÇÃO EM GOUVERNEURS DE LA ROSEE, DE JACQUES ROUMAIN[1].
Humberto de Oliveira[2]
À memória de Genildo Batista da Silva, em gratidão pelas lições de vida e amizade.
Começo por agradecer à grande amiga e colega Celina de Araújo Scheinowitz, incansável divulgadora das culturas francófonas, pela honra em me convidar para compor este livro que busca celebrar o bicentenário de criação inaugural da primeira república negra fundada nestas Américas, o Haiti. E por sugerir que minha colaboração se pautasse em Gouverneurs de la Rosée, esta obra prima da literatura ocidental, escrita por Jacques Roumain, em 1938.
Esta é uma leitura que me traz lembranças ainda bem nítidas de uma infância nem assim tão remota, notadamente de um dia nublado, numa pequena fazenda no município de Mundo Novo, no piemonte da Chapada Diamantina desta Bahia.
Depois de longos meses de estiagem, quando as fazendas e sítios já não tinham mais água nas cacimbas e açudes – única forma de captação de águas potáveis numa região em que os poços artesianos costumam dar água (salobra) numa profundidade jamais inferior a oitenta metros-, movidos por um costume bem regional, um grupo de trabalhadores rurais e suas mulheres, reunidos num dia em que pesadas nuvens lançavam os bons augúrios de fortes e esperadas chuvas, cantando modinhas e trovas, gritando adivinhas ou provocando o escárnio com piadas picantes e até mesmo indecorosas, com os corpos banhados de suor, animando-se com goles de cachaça cuja garrafa passava de mão em mão, cavavam a terra de um velho tanque secular, até deixá-lo limpo e escavado em sua piçarra, que o mais ingênuo poderia pensar tratar-se de uma gigantesca tigela de cerâmica que teria ido ao forno. E quando eu perguntei o que significava toda aquela gente reunida, a trabalhar, cantando e rindo sob o sol de quase quarenta graus, o meu avô, mesmo desconfiado das coisas desse mundo e de algumas do outro, também, sem esconder de todo a emoção, me disse « é o adjutório, […]. O povo veio nos ajudar […] ».
De fato, a ajuda foi completa, pois terminado o trabalho dos homens, no fim da tarde, mãos hábeis, de mulheres que já tinham feito a comida e confeccionado vassouras com ervas medicinais, varreriam o chão brilhante do tanque que logo mais iria receber as águas abençoadas das trovoadas do verão…
Movidos pela solidariedade e pela necessidade, os vizinhos, mais pobres, mesmo se nem tão próximos, ofereciam-se para ajudar e garantiam, assim, que os elos da cadeia de fraternidade fossem assegurados. E cada um e cada uma daquelas pessoas jamais duvidava que em sua vez também contaria com a mesma força acionadora do desenvolvimento, fosse para a construção de casas, ou a preparação do solo para o plantio, ou para a colheita e a bata do feijão, ou a limpeza dos barreiros.
Aquele feixe de braços que se uniam, remos sobre o mar do trabalho, galhos de uma mesma árvore cujos frutos planejados iriam trazer a abundância e a fartura sem riqueza representadas pelo armazenamento da água, se chamava adjutório. Que é uma outra forma de companheirismo e camaradagem que os tempos modernos ameaçam destruir.
Adjutório ou mutirão, são ambos filhos da solidariedade e irmãos do altivo Coumbite haitiano de que nos fala Jacques Roumain, em seu romance Gouverneurs de la Rosée. Talvez até sejam o mesmo, só que transculturados, atualizados no tempo e no espaço, recebendo novos aportes dados por populações diferentes, mas com as mesmas necessidades e a mesma vontade de tornar reais os projetos humanos avalizados pela coletividade. Só que em contextos bem diversos e por vezes adversos. Inegavelmente, constituem-se, ao meu ver, formas sadias da resistência das populações à política do abandono e da falta de assistência. Sinais de vitalidade e de saúde de um povo que não perdeu a capacidade de amar.
A sensatez que habita em mim, e que costumo cultivar com doses de leitura e outros momentos de meditação, me faz não querer construir um texto redundante e até mesmo dispensável de crítica literária a este romance cuja fortuna crítica está consolidada. O que me interessa neste texto já consagrado pelo cânone, são os recortes que deverei fazer, a partir dos conceitos de literatura comparada, utopia, cidadania, potencialidades, desejo, ética. E aos que por ventura ainda estranhem essa apropriação do texto literário, gostaria de lhes refrescar a memória com um pequeno trecho de Terry Eagleton quando afirma que, se essas pessoas:
Semblent être gênés par l’ idée que le texte littéraire n’ait pas une seule signification correcte, mais ils sont en fait peu nombreux. Ils sont plus nombreux à penser que les significations d’ un texte ne sont pas là, attendant d’ être saisies, mais que le lecteur à un rôle actif à jouer. Peu de gens seraient aujourd’ hui gênés par le fait que le lecteur n’ arrive pas vierge au texte, pur de toute implication sociale et littéraire, esprit suprêment desintéressé, page blanche sur laquelle le texte viendra s’ inscrire (EAGLETON:1994, p. 196)
Acrescente-se a isso que este trabalho tem a intenção de seguir uma recente, embora já sedimentada tradição da Literatura comparada, tomada no sentido que lhe dão todos os que nos lembram que o discurso comparativista desempenha o decisivo papel de suscitar os pontos de encontro. Neste caso, trata-se de estabelecer as convergências de discursos, fazendo dialogar o discurso literário com o político, o social, etc. única maneira possível de verificar hipóteses ou intuições ditadas pela interpretação do leitor. Logo, faz-se necessário trabalhar com diferentes discursos, saberes diversos para chegar-se à Literatura comparada enquanto plataforma conceitual sobre o encontro das culturas e o modo de tematizá-las.
Guardadas as devidas proporções, e a depender de quem fala e de onde se fala, o Haiti é aqui, como já o afirmou Caetano Veloso, e é bem mais do que provável que lá se encontre também o Brasil. Pois de há muito que nossas certezas quanto a identidades fixas já se corroeram ante o espetáculo de imagens fugidias e a proliferação de discursos que nos lembram a todo momento da continua movência dos jogos de identidade sempre em inacabável processo.
E também porque os modelos de desenvolvimento econômico desse chamado capitalismo tardio, ao tempo em que pode constituir-se numa ameaça ou perigo para muitos, por outro lado, para multidões desprovidas de pão e sonhos, pode representar numa espécie irônica e deturparda de um (perigoso) ‘advento libertador’. E é sob essa bandeira que a globalização, em sua face mais dura, penetra mercados e fronteiras, consciências e corações, fingindo redesenhar um novo mundo de iguais desigualmente situados, aqui como alhures, no Brasil, e no Haiti.
Um outro traço bastante comum aos dois países, às duas nações, é ainda a dificuldade de reinvindicar-se uma cidadania, conceito sempre reduzido à capacidade de consumir de cada indivíduo. Como brasileiro e latino-americano, eu não poderia desconhecer que cidadania, por seu caráter universalista, encerra não apenas contradições flagrantes, mas sobretudo pode legitimar exclusões, se se desconhecem as extremas desigualdades no seio das sociedades capitalistas, com suas divisões internas acentuadas, com seus fossos mais ou menos largos, a depender da região, da cidade, do bairro, pois de há muito também se foram as certezas em centros e periferias fixos. Por isso é que podemos dizer que há muito do Brasil no Haiti e vice-versa, a partir de uma herança comum.
Sociedades criadas sob a fundamentação dos ideais de fraternidade, as nações americanas logo abandonariam o sonho igualitarista, passando a reproduzir com os elementos humanos das Américas – e com o negro trazido como escravo – o processo de dominação que suas antigas metrópoles lhes impuseram.
Despojados das terras de seus ancestrais, tornados apátridas em seu próprio território, os ameríndios tiveram cassados os direitos à sua geografia e à sua história pelas antigas colônias que, tornadas independentes e firmando-se por se constituírem em potências hegemônicas, por sua vez, reproduzem um colonialismo interno nas fronteiras que elas próprias construíram na disputa pelo espaço geográfico pré-europeu[3].
Sem se darem conta, os cidadãos do espaço americano duplicariam um modelo europeu que, ao se basear nas teorias raciológicas, atestaria o predomínio da raça branca sobre as demais, hierarquizando culturas e homens e, assim, iria justificar o abandono dos ideais igualitaristas que marcaram os primeiros tempos dos Séculos das Luzes (SCHWARCZ: 1995). Legitimava-se, portanto, desta forma, a repulsa ao ameríndio, “preguiçoso e indolente, incapaz de racionalidade”, que passa a ser considerado um entrave para a livre expansão do projeto de ocupação econômica dos espaços geográficos. E legitimava-se também a arrogância que iria escravizar populações inteiras, saquear nações e pilhar templos sob a bandeira da mission civilisatrice e em nome do progresso da civilização (da “única”, no caso a branco-européia).
A mesma intolerância para com o negro trazido como escravo, atirado numa diáspora dolorosa, tendo os laços afetivos e culturais partidos, interrompidos, numa clara tentativa de apagamento da herança cultural de cada tribo ou nação, condenando cada ser, homem ou mulher, jovem ou adulto à afasia social, ao silenciamento de sua cultura tribal, à incomunicabilidade, à impossibilidade de reavivar as marcas de pertença, violentamente desenraizado. Com estratégica crueldade e rude pretensão, procurava-se condenar o negro à dúvida da origem, assim como à ignorância do ponto de chegada, buscando fazer do escravo uma tábula rasa. Um ser sem memória, sem afetividade, sem laços de família, sem vínculos de pertencimento, sem história a ser partilhada. Eis o projeto escravagista em sua face cruel, pois significa negar ao escravo a sua humanidade.
É desnecessário falar da extrema violência sobre a alma e o corpo do negro tornado escravo? Não, pois para se compreender as lutas pela Independência do Haiti, é importante se ter em mente os motivos que levaram todo um povo a se rebelar, enfrentando o poderio militar do branco, sem medo de confrontar-se com o poder colonial e desejando dele libertar-se pelo uso da força. Somente um povo aviltado e expoliado poderia reagir, com a mesma intensidade, com a mesma violência contra os seus antigos senhores.
A tragédia dessa nação pode ser vista, de modo emblemático, em El Reyno deste mundo, onde Alejo Carpentier nos oferece, numa narrativa barroca, a descrição romanceada dos últimos dias do reinado de Henri Christophe :
[…] Christophe se había mantenido siempre al margen de la mística africanista de los primeros caudillos de la independencia haitiana, tratando en todo de dar a su corte un empaque europeo. Pero ahora, cuando se hallaba solo, cuando sus duques, barones, generales y ministros lo habían traicionado, los únicos que permanecían leales eran aquellos cinco africanos, aquellos cinco mozos de nación, congo, fulas o mandinga, que aguardaban sentados como canes fieles, com las nalgas puestas en el mármol frío de la escalera, una Ultima Ratio Regum, que ya no podía imponer-se por boca de cañones.[…]”[4]
E, talvez, porque tenham reproduzido os mecanismos da mesma e velha violência, tentando reproduzir hierarquias no seio da própria sociedade negra, os líderes políticos do movimento independentista do Haiti terminariam sendo vitimados pelo veneno que esperavam apenas dele fazer uso: « Pero lo que más assombraba a Ti Noel era el descubrimiento de que esse mundo prodigioso, como no lo habían conocido los gobernadores franceses del Cabo, era un mundo de negros. […] »(Carpentier, op.cit. p. 93).
Numa insidiosa e trágica armadilha, na tentativa de libertação, ao se apossarem dos instrumentos e mecanismos da antiga dominação, deixaram-se enredar pelas formas doentia do poder que tanto mal lhes fizera.
Todos los intentos de protesta habían sido callados en sangre. Andando, andando, de arriba a abajo y de abajo a arriba, el negro comenzó a pensar que las orquestras de cámara de Sans-Souci, el fausto de los uniformes y las estatuas de blancas desnudas que se calentaban al sol sobre sus zócalos de almócarabes, entre los bojes tallados de los canteros, se debían a una esclavitud tan abominable como la que había conocido en la hacienda de Monsieur Lenormand de Mezy. Peor aún, puesto que había una infinita miseria en lo de verse apaleado por un negro, tan negro como uno, tan belfudo y pelicrespo, tan narizñato como uno; tan igual, tan mal nacido, tan marcado a hierro, posiblemente, como uno. Era como si en una misma casa los hijos pegaran a los padres, el nieto a la abuela, las nueras a la madre que cocinaba. Además, en tiempos pasados los colonos se cuidaban mucho de matar a sus escalvos- a menos de que les fuera la mano-, porque matar a un esclavo era abrirse una gran herida en la escarcela. Mientras que aquí la muerte de un negro nada costaba al tesoro publico : habiendo negras que parieran- y siempre las habia-, nunca faltarían trabajadores para llevar ladrillos a la cima del Gorro del Obispo[5].
Contaminados pelo ódio e pela fome de vingança, embriagados pela ambição do poder, os líderes foram engolidos pela hybris. Frustrou-se assim uma das mais belas páginas da história da humanidade, ao menos nestes lados do Ocidente, de ver-se um povo dominado fazer-se senhor do seu destino, construir uma sociedade livre e soberana, realizando nas terras americanas uma utopia concreta: a República Livre do Haiti.
Esta primeira república negra do continente, trazendo em seu bojo o ideário da liberdade, da igualdade e de fraternidade, representa, ainda hoje, um projeto audacioso de construção, nestes trópicos, de uma sociedade ancorada na fraternidade entre todos os homens que se vêem como iguais e como cidadãos na mais ampla acepção desta palavra.
Por uma sociedade assim é que se bate, sem armas e sem violência, Manuel, um dos mais belos herois da literatura do Ocidente, neste romance de Jacques Roumain. Pois, sob a estrutura do romance de amor romântico, na tradição do melhor folhetim e da melhor tradição européia (Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, etc), onde o final feliz será negado porque o casal terá realizado o amor carnal, (e neste ponto não há como se negar que Roumain inscreve sua obra na tradição do ideal do amor romântico), outras leituras, subjacentes à estrutura formal do texto narrativo, podem ser evidenciadas. E uma delas aponta necessariamente para a construção de uma sociedade baseada na solidariedade e na concórdia. Onde os homens sejam livres e soberanos, sejam de fato senhores de seu destino, autônomos, cidadãos plenos.
Sou dos que comungam da ideia de que literatura e política andam de mãos dadas num feliz mesmo se por vezes conturbado pacto tácito e silencioso, mesmo se às vezes pareça invisível aos olhos mais distraídos. Cada autor, de modo involuntário ou não, de forma mais explícita ou menos evidente, não pode deixar de inscrever em sua obra, por mais ‘literariedade’ que ela possa ter, as marcas de sua ideologia, com suas crenças silenciosas e secretas, que ele próprio, às vezes, suspeita não possuir. Gouverneurs de la Rosée[6] inscreve-se na linha de uma literatura engajada, no sentido em que:
La litterature, nous a-t-on dit, est totalement engagée dans la vie des hommes et des femmes; elle est plus concrète qu´ abstraite, elle décrit la vie dans toute sa richesse et sa variété, et elle rejette l’ étude conceptuelle en lui préferant le sentiment et le goût pour ce qui est vivant.]…] (EAGLETON : 1994, p.193)
A contemporaneidade de Gouverneurs de la Rosée está nessa relevante proposta de reatualizar os conceitos de utopia, solidariedade, fraternidade, comunidade e perdão que encerram o imaginário de uma humanidade ávida por reconciliação e amorosidade pregadas pelos grandes profetas: Cristo, Maomé, Buda… ou que também estariam nos fundamentos de uma filosofia marxista que sinaliza para a possibilidade concreta de um dia os homens viverem na fraternidade. Ou mais claramente, na filosofia da práxis tal qual pensada por Ernst Bloch, no seu Princípio Esperança, que se constitui em o projeto global de uma filosofia materialista do futuro cujo âmago é uma ontologia do ainda- não-ser, que muito mais do que todas as outras ontologias da modernidade, baseia-se na teoria das potencialidades imanentes do SER “que ainda não foram exteriorizadas, mas que constituem uma força dinâmica que projeta necessariamente o ente para o futuro” (MÜNZER:1993, p.14)
E aqui chegamos a um conceito decisivo para o entendimento de nosso trabalho: o conceito de utopia. Diversamente dos conceitos recorrentes, remetendo à Utopia, de Thomas Morus, para Ernst Bloch “utopia é, em primeiro lugar, um topos da atividade humana orientada para um futuro, um topos da consciência antecipadora e a força ativa dos sonhos diurnos ”. Ou seja, é a força criadora da humanidade, numa projeção do desejo, que vai plasmar no real o projeto acalentado, vai tornar em ato o que potencialmente já existe. É importante então precisarmos o conceito de ‘sonho diurno’:
O sonho diurno (Tagtraum) é essa qualidade que exprime, como o sonho noturno, construções imaginárias, relacionadas com o cumprimento de um desejo, mas mantendo simultaneamente o eu. Este “eu” afirma-se e manifesta-se também nos sonhos diurnos, sem exercer a menor censura; deixa livre curso à imaginação. O sonho diurno ignora a interrupção do sonho. Os sonhos diurnos são privados de todo envolvimento mitológico e simbólico, de todas imagens estranhas e problemáticas que são o objeto da interrupção psicanalítica dos sonhos. Outra diferença importante: são sempre orientados para o futuro, ao passo que os sonhos noturnos têm uma relação privilegiada com o passado, tendo a função de liberar as imagens do desejo comprimidas no subconsciente (MÜNZER, op. cit. p.25-26)
O projeto de Manuel caracteriza-se, portanto, por ser o resultado de um ‘sonho diurno’, “definido como um topos interior, como lugar de nascimento do desejo e da imaginação, como “guia” das “imagens do desejo” (Wunschbilder) de algo que “ainda-não-é” (Noch-nicht-Sein). E essas imagens de desejo têm a qualidade de antecipar um futuro onde predomina absolutamente, segundo Bloch, a utopia”.
Se se pode chamar, de fato, revolucionário, a este projeto de Manuel, é por ser ele todo fundado estrategicamente na recusa à violência, a qualquer espécie de violência, seja física, seja psicológica, sobre os seres humanos ou sobre a natureza. Manuel comparece no texto narrativo como imbuído de missões transcendentes: ele vem reinstituir o amor em sua acepção plena da palavra, indicando inclusive despossessão, o que desvincula este sentimento da paixão amorosa.
Manuel sabe que não tem nenhum passado mítico ao qual retornar, mas num ‘sonho diurno’, numa consciência antecipadora, ele percebe a possibilidade de (re)criar o mundo, de voltar a realizar o encantamento do local e, para isso, ele estabelece novas regras de convivência, nova política e nova ética para esta utopia concreta que será construída com o seu sacrifício pessoal.
Profundamente religado à vida, embora talvez por isso mesmo sem nenhum interesse pelas formas de religião institucionalizadas (nem o Cristianismo nem o Vodu lhe atraem), Manuel pode ser lido como um ser crístico que se coloca a serviço de uma causa coletiva, de um projeto de redenção para a humanidade. E talvez fosse melhor dizer um ser búdico, pois segundo Buda, “[…] Sempre que a lei (dharma) é suprimida e se instaura a injustiça, neste caso eu surjo para proteger os bons e destruir aqueles que fazem o mal, para estabelecer a lei espiritual, de época em época, eu me encarno[i].”
Desolação e injustiça não faltam a Fonds-Rouge, cenário desta narrativa que é construída sobre a realidade social e geográfica do Haiti,
Derrière la Maison, la colline arrondie est semblable à une tête de négresse aux cheveux en grains de poivre: de maigres broussailles en touffes espacées, à ras de sol ; plus loin, comme une sombre épaule contre le ciel, un autre morne se dresse parcouru de ravinements étincelants; les érosions ont mis à nu de longues coulées de roches : elles ont saigné la terre jusqu’à l’os. Pour sûr qu’ils avaient eu tort de déboiser. Du vivant encore de défunt Josaphat Jean-Joseph, le père de Bienaimé, les arbres poussaient dru là-haut. Ils avaient incendié le bois pour faire des jardins de vivres : planté les pois-congo sur le plateau, le maïs à flanc de coteau. (GR. p.6)
Do passado feliz onde havia a fartura sem riqueza, onde os homens partilhavam o trabalho na alegria do companheirismo do Coumbite, o desmatamento, a devastação da natureza e as divisões entre os homens provocadas pela posse da terra tornaram Fonds-Rouge um lugar inóspito onde qualquer perspectiva de fartura e prosperidade era apenas uma lembrança do passado:
Bienaimé, sur l’étroite galerie fermée par une balustrade ajourée et protégée par l’avance du toit de chaume, contemplait sa terre, sa bonne terre, ses plantes ruisselantes, ses arbres balancés dans le chant de la pluie et du vent. La récolte serait bonne. Il avait peiné au soleil à longueur de journée. Cette pluie, c’était sa récompense. Il la regardait, avec amitié, tomber en filets serrés, il l’écoutait clapoter sur sa dalle de pierre devant la tonnelle. Tant et tant de maïs, tant de pois-congo, le cochon engraissé : cela ferait une nouvelle vareuse, une chemise et peut-être le poulain bai de voisin Jean-Jacques s’il voulait rabattre sur le prix. […] Mais tout ça c’était le passé. Il n’en restait qu’un goût amer. On était déjà mort dans cette poussière, cette cendre tiède qui recouvrait ce qui autrefois avait été la vie, oh ! pas une vie facile, pour ça non, mais on avait bon courage et après s’être gourmé avec la terre, après qu’on l’avait ouverte, tournée et retournée, mouillée de sueur, ensemencée comme une femelle, venait la satisfaction : les plantes et les fruits et tous les épis. (GR, p. 12)
O Coumbite merece um destaque todo especial do narrador que concede a Bienaimé a palavra saudosa e nostágica para tecer o elogio à prática coletiva da solidariedade, para, em sua condição de ancião, reatualizar o passado e sinalizar ao leitor a importância da missão que terá Manuel :
[…] « Ah ! ces coumbites », songe Bienaimé… Dès le petit jour, il était là, en chef d’escouade sérieux, avec ses hommes, tous habitants de grand courage […] On entrait dans l’herbe de Guinée ! (Les Pieds nus dans la rosée, le ciel pâli, la fraîcheur, le carillon des pintades sauvages au loin…[…]Les hommes s’en allaient la houe sur l’ épaule. Le jardin à nettoyer était au tournant du sentier, protégé par un entourage de bambous entrecroisés. Des lianes aux fleurs mauves et blanches s’y accrochaient en buisson désordonnés ; […] (les hommes) écartaient les lattes mobiles de la barrière. À l’entrée du jardin, le crâne d’un boeuf blanchissait sur un poteau. Maintenant ils mesuraient leur tâche du regard : ce « carreau »d’herbes folles embrouillé de plantes rampantes. Mais c’ était de la bonne terre ; ils la rendraient aussi nette que le dessus d’une table fraîchement rabotée. Beaubrun, cette année, voulait y essayer des aubergines.
Alignez, criaient les chefs d’escouade.
Le Simidor Antoine passait en travers de ses épaules la bandoulière du tambour. Bienaimé prenait sa place de commandement devant la rangée de ses hommes. Le Simidor préludait par un bref battement, puis le rythme crépitait sous ses doigts. D’un élan unanime ils levaient les houes haut en l’air. Un éclair de lumière en frappait le fer : ils brandissaient, une seconde, un arc de soleil.
La voix du Simidor montait rauque et forte :
A tè…
D’un seul coup les houes s’abattaient avec un choc sourd, attaquant le pelage malsain de la terre.
-Femme-la dit, mouché, pinga
ou touché mouin, pinga-eh
Les hommes avançaient en ligne. Ils sentaient dans leurs bras le chant d’Antoine, les pulsations précipitées du tambour comme un sang plus ardent (sic) (GR, p. 7-8)
Assim como Bienaimé, seu velho pai, Manuel tem uma profunda ligação com a terra e, quando retorna, depois de haver passado quinze anos como cortador de cana em Cuba, ele refaz o caminho até a colina e se reintegra à terra, se reconhece nela, retoma os laços que jamais haviam se partido:
[…] Il se sentait plein d´allégresse, malgré la pensée obstinée qui le hantait. Il avait envie de chanter um salut aux arbres: Plantes, ô mes plantes. Je vous dis: honneur; vous me répondrez: respect, pour que je puisse entrer. Vous êtes ma maison, vous êtes mon pays. Plantes, je dis: lianes de mes bois, je suis planté dans cette terre, je suis lié à cette terre. Plantes, ô mes plantes, je vous dis: honneur; répondez-moi: respect, pour que je puisse passer. (GR, p.31).
Manuel constitui-se num modelo do indivíduo que consegue integrar os diversos arquétipos do desenvolvimento humano. Sua saída da terra natal representa o exílio do heroi que precisa ir em busca de alternativas, necessita encontrar o ‘remédio’ para os males que afligem o espaço social, ou o ‘reino’. Afastado de sua gente, dos que ele ama e venera, Manuel terá de reconstruir sua identidade com a integração de novos valores, novas culturas: aprende a expressar-se em outras línguas, convive com outras formas de organização social, inicia-se nos movimentos político-sindicalistas que apontam para um movimento mais amplo, libertarista, e, municiado dessas novas armas, o conhecimento, ele volta para sua terra para nela operar as transformações necessárias para a ‘saúde do reino’, para a ‘cura’ dos males sociais (PEARSON:1998).
[…] je vais te parler franc, compère. Écoute-moi, t´en prie, écoute-moi bien. Cette question d´eau, c´est la vie ou la mort pour nous, la salvation ou la perdition. J´ai passé une partie de la nuit aux yeux clairs: j´étais sans sommeil et sans repos à force de réflexions. Je calculais, comment sortir de cette misère? Plus j´examinais la chose dans ma tête, plus je voyais qu´il n´y avait qu´un chemin et tout drète: faut chercher l´eau. Chaque nègre a sa conviction, n´est ce pas? Eh bien, je fais le serment: je trouverai l´eau et je l´amèrenai dans la plaine, la corde d´un canal au cou. C´est moi qui le dis, moi-même, Manuel Jean-Joseph. (sic) (GR, p. 34)
Arquétipo altamente positivo, Manuel encarna o guerreiro genuíno que luta desinteressadamente, que canaliza suas energias para o bem da coletividade. Forte e corajoso, não teme a violência (em Cuba, ele elimina um policial, no canavial, afastando o perigo de que toda a luta dos camponeses fosse perdida), mas sabe que para um projeto maior, em sua terra natal, será preciso uma arma mais poderosa ainda, que não possa engendrar novas formas de destruição. Ele sabe que precisa romper o círculo da violência, do ódio, da miséria e da dor. Ele precisa instituir novas tradições. Daí que Jean Jacques Alexis, em sua crítica a este romance tenha dito que “[…] il est sans réserve le livre de l’amour.[…] ” (Dorsinville:1981, p.79) É com o amor que Manuel vai empreender sua vitoriosa luta.
A divisão entre os habitantes de Fonds-Rouge se dá com a partilha da herança deixada pelo patriarca Johannes Lonjeannis, que deixa incontáveis e incertos filhos. É este modelo patriarcal que coloca em perigo a harmonia do lugar, uma vez que a disputa pela terra provocou o derramento de sangue provocado pelo tio de Manuel, que morrerá na prisão. Estes acontecimentos selam o fim do Coumbite e contribuem para o empobrecimento de Fonds-Rouge que será totalmente desmatado. » On a fini par séparer la terre, avec l´aide du juge de paix. Mais on a partagé aussi la haine. Avant on ne faisait qu´ une seule famille. C´est fini maintenant. Chacun garde sa rancune et fourbit sa colère. Il y a nous et il y a les autres. Et entre les deux: le sang. On ne peut enjamber le sang ». (GR, p. 37) (Grifos meus).
O compromisso de Manuel em restituir a prosperidade ao lugar passa por sua compreensão de que é preciso arregimentar as forças para o trabalho e para isso não pode haver mais divisões entre os homens, é preciso que o Coumbite volte a acontecer, trazendo a água prometida. Logo, Manuel vai construir estratégias de reconciliação, o que significa reavivar e reativar os elos da corrente de solidariedade…
Ce que nous sommes ? Si c´est une question, je vais te répondre: eh bien, nous sommes ce pays et il n´est rien sans nous, rien de tout. Qui est-ce qui plante, qui est-ce qui arrose, qui est-ce qui récolte? Le café, le coton, le riz, la canne, le cacao, le maïs, les bananes, les vivres et tous les fruits, si ce n´est pas nous, qui les fera pousser? Et avec ça nous sommes pauvres, c´est vrai, nous sommes malheureux, c´est vrai, nous sommes misérables, c´est vrai. Mais sais-tu pourquoi, frère? À cause de notre ignorance: nous ne savons pas encore que nous sommes une force, une seule force: tous les habitants, tous les nègres des plaines et mornes réunis. Un jour, quand nous aurons compris cette vérité, nous nous lèverons d´un point `a l´autre du pays et nous ferons l´assemblée générale des gouverneurs de la rosée, le grand Coumbite des travailleurs de la terre pour défricher la misère et planter la vie nouvelle. (GR, p. 46-47) […] ce sera un gros travail de conduire l´eau jusqu´à Fonds-Rouge, il faudra le concours de tout le monde et s´il y a pas de réconciliation ce ne sera pas possible. (GR, p. 58)
Mas uma sombra se interpõe em seu caminho, Gervilen e sua herança de ódio e ciúme, já que ele disputa também a bela Anaïse. Gervilen e sua sede de sangue. Somente a habilidade de Manuel será capaz de evitar o confronto, de evitar a repetição do passado, a atualização da divisão que condena os homens à misèria. E se o desfecho do romance, com a morte do protagonista poderia sugerir a falência do projeto, outro é o resultado: Manuel é vitorioso e confirma uma » vocação » anunciada através de sinais, de insights que são plantados pelo narrador através da fala de várias outras personagens: de Délira, que vê a aura luminosa do seu filho ( « Il y a de la lumière sur son front, pensait-elle avec extase« ) (GR, p.28). De Anaïse que afirma textualmente após ouvi-lo: « Oui, tu le feras. Tu es le nègre qui trouvera l´eau, tu seras le maître des sources, tu marcheras dans ta rosée et au milieu de tes plantes. Je sens la force et ta vérité » (GR, p. 57).
É que Manuel acena para a criação de um ‘futuro autêntico’[ii] e com isso desperta nos demais a necessidade de ouvir suas pontecialidades, de se acreditar que é possível criar um destino, ao oferecer um projeto de modo verdadeiro e veemente, belo e bom; Manuel sabe que provoca em todos ressonâncias que vão acionar as forças para a realização do desejo de concretizar o projeto, pois apesar da camada de resignação, cada ser humano carrega em si potenciações recalcadas ou reprimidas que são despertadas pela fala que vem acordar a sua « sede », por assim dizer. Por isso o protagonista é um predestinado, um ser profético, na medida em que
« Ser inspirado ou conduzido pelo Self é estar centrado. A palavra que vem do » centro » é reconhecida por seu sabor de » integração », de formulação, quase sempre paradoxal; ela mantém unificado o que a simples racionalidade ou a personalidade consciente teriam tendência a excluir […] » LELOUP, op.cit, p. 171).
Na verdade, as palavras de Manuel vão ao encontro das potenciações adormecidas, despertam nos habitantes e Fonds-Rouge o necessário orgulho para retomar em suas mãos o destino entregue às divindades. O protagonista convida os seus irmãos a assumirem uma nova ética, na medida em que se convençam de que serão capazes de adotar atitudes empreendedoras, rompendo a mentalidade fatalista do lugar. Ao invés da crença numa suposta ‘punição’ que teria como resultados a miséria a tristeza, ele desperta o orgulho que remeteria à herança cultural africana, no sentido em que
[…] o orgulho é a consciência que temos dos desígnios de Deus sobre sós, assim como a confiança que estes desígnios nos inspiram. O orgulhoso (fier) tem o sentimento de que sua razão de ser é de realizá-los. Não procura a felicidade ou o bem-estar, enquanto podem não coincidir com o conceito que Deus tem dele. Seu sucesso é o plano de Deus ; ama sua sorte como os bons cidadãos acham sua felicidade na realização de seu dever cívico. O homem orgulhoso acha seu contentamento na implementação de seus destino. Os seres sem orgulho ignoram que uma idéia divina presidiu sua criação ; talvez façam que os outros por vezes duvidem que tal plano existiu. […] (BLIXEN, apud LEPARGNEUR: 1989, p. 70)
E se Manuel é re(conhecido) por todos é porque
[…] A parte luminosa do Destino é de fácil atribuição, com seu pólo mais ou menos narcíseo ; de merecida retribuição pessoal, ao termo dos esforços e coroando capacidades individuais, ou como frutificação do labor coletivo, da paciência sapiencial, da aguda reflexão, da obstinação no agir por parte da humanidade ou de um grupo relevante dela […] (LEPARGNEUR, op. cit.p.56)
Que não se estranhe o fato de Manuel, heroi e predestinado, encontrar a morte de maneira surpreendente, à traição, numa noite escura, depois de ter conseguido o que parecia quase impossível, o compromisso de adesão ao projeto do Coumbite. Primeiro, porque o heroi também é mortal. Depois, porque sua morte é o coroamento de sua missão e precisa ser lida como um rito sacrificial, confirma a dimensão sagrada do pacto que é estabelecido com o povo agora (re) unido.
Tomando seu destino em suas mãos, Manuel estabelece as regras do novo pacto social: com a recusa à justiça corrupta do lugar, ele condena Gervilen a vagar como um anjo da treva, ´afastado de todos´, ‘diabólico’, escondido dos olhos de todos, para sempre exilado. E, com isso, marca também a peremptória recusa em legitimar um aparato judicial corrompido e arbitrário que apenas aumenta a desgraça social com a perseguição aos mais desfavorecidos.
Seu corpo morto se constitui num banquete para a grande festa que se inaugura, celebrando as novas núpcias do povo com a terra, uma festa aparentemente pagã, mas de profundo significado religioso, pois é religação do homem até então abandonado com o Todo. E a água que é trazida pelo povo em festa é o vinho da redenção e da alegria que anima os homens e fertiliza a terra livrando-a das adversidades da longa seca, trazendo a abundância a a fartura para toda a gente.
Se tudo contribui para a realização do destino coletivo de Fonds-Rouge, graças ao empreendimento de Manuel, não se pode negar que o destino/sina pessoal do protagonista parece estar selado a partir de várias observações que podem ser depreendidas claramente na narrativa :
- a) no culto vodu realizado, ao se manifestar, Ogun anuncia o derramento de sangue e o escoamento da água.
Le possédé, d’un bond, se leva, repoussa brutalement les hounsi et se mit à danser en chantant : Bolada Kimalada, o Kimalada
N’a fouillé canal la, ago
N’a fouillé canal la, moiun dis, ago yé
Veine l’ouvri, sang couri
Veine l’ouvir, sang coulé, ho
Bolada Kimalada, o Kimalada[7]
- b) Os insights de Délira, que por várias vezes fala dos seus presságios, a partir da abertura do romance, tanto na primeira linha, ao afirmar que « Nous mourrons tous…», quanto em várias outras passagens, já que seus temores são despertados pelas palavras do houngan possuído por Ogun : « –Bienaimé, dit, Délira, mon homme. Je n’aime pas ce que Papa Ogun a chanté, non. Mon coeur est devenu lourd. Je ne sais pas ce qui m’arrive. » (p. 43) Ou pela confirmação dos temores, pois ela vive sob o medo e o temor dos castigos os mais cruéis dessas divindades « cegas », segundo o próprio Manuel : « ah, Manuel, quel chagrin j’avais, et maintenant tu es retourné et je ne suis pas tranquille, non, et depuis quelques nuits, je fais de mauvais songes » (GR, p. 65). Ou quando afirma, diante da ausências de Manuel : « Lorsque tu pars pour courir dans ces mornes – qu’est-ce que tu cherches ?- c’est un mystère- je te regarde disparaître derrière les bayahondes et tout d’un coup, mon coeur s’arrête : s’il ne revenait pas, s’il s’en allait pour toujours ? » (p. 66).
Se não resta dúvida de que Manuel se torna o banquete sacrificial, penso que é preciso uma pergunta : a quem ? Jacques Roumain, embora seja um escritor engajado e, portanto, criador deste romance que se inspira na linha programática do Partido Comunista, parece deixar ao leitor a possibilidade das seguintes interpretações :
- Divindade da guerra e do fogo, Ogun não pode compreender a recusa de Manuel, ao qual é consagrado, em seguir a tradição do derramento de sangue (deixar de lutar com Gervilen, com armas tradicionais, seria o esperado pela cosmogonia do lugar). Nesse caso, a reconciliação soaria como uma traição ao destino reservado, uma ruptura provocada pela liberdade que deveria ser « punida » (observe-se que há uma profecia clara : o canal será aberto, e a veia será cortada.
- Protegida pelo Figuier-maudit, a fonte d’água que Manuel descobre, e sobre a qual faz amor com Anaïse, precisa vingar-se por ter sido perturbada, por quebrar o encanto e liberar a água. (p.80)
- Ou ainda por ciúme da Senhora das Águas, la Maîtresse de l’Eau que se sente traída por Manuel em seu amor por Anaïse, com a qual ele faz amor no mesmo local. (p. 100)
Longe de mim querer mergulhar meu provável leitor num mundo ‘supersticioso’. Outra é a leitura que quero porpor : é que as divindades, presas de crenças muito fortes, sentem-se ameaçadas pela liberdade dos homens e necessitam recompor a ordem da tradição, buscando a imobilidade do mundo. Depois, tomadas de paixões, esses deuses não podem mensurar o preço e a violência dos seus desejos sobre os homens. Cegas de paixões e quereres, não podem admitir o inesperado e o improvável. Este é o privilégio apenas reservado aos humanos.
As divindades precisam manter-se num mundo de identidades fixas, das tradições asseguradas, pois não podem conviver com a tradução, não podem aceitar o abalo sobre o mundo das certezas, provocando a brusca alteração dos papéis reservados a cada um. Apaixonadamente, isto é tomadas pela hybris, achando-se traídas, as divindades permitem o sacrifício de Manuel. Seja por amá-lo, por desejá-lo, como a Senhora das Àguas, seja por sentir-se atraiçoado, como Ogun, de uma forma ou de outra, deixam livre a mão do assassino. Mesmo porque, ao reencantar o mundo com o amor, Manuel deve unir-se aos deuses, não mais pode permanecer entre os mortais, pois tornou-se divino porque une, isto é » […] vincula, unifica e restaura a inteireza vital » (LELOUP: op.cit. p. 70).
Que não se estranhem estas observações aparentemente e só aparentemente naïves: no próprio texto narrativo de Gouverneurs de la Rosée, Jacques Roumain, malgré sua militância no Partido Comunista, ou pour cause, evidencia a riqueza cultural haitiana tanto na diversidade religiosa (Catolicismo e Vaudou) quanto lingüística (língua francesa e língua créole, e mais os aportes culturais e lingüísticos que o próprio herói Manuel difunde e que lhe emprestam o olhar clarividente), a diversidade do relevo haitiano, a riqueza da fauna e da flora… tantas crenças, tantas (in) certezas, algumas verdades…
Como não lembrar de outra cultura também tão diversa em sua riqueza, a baiana, e a crença no poder de divindades de determinar o destino humano? Basta ouvir esta canção de Dorival Caymi:
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar [bis]
A noite que ele não veio foi
Foi de tristeza pra mim
Saveiro voltou sozinho
Triste noite foi pra mim
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar [bis]
Saveiro partiu
de noite foi
Madrugada não voltou
O marinheiro bonito
sereia do mar levou
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar[8]
Yemanjá e suas sereias não podem entender que os homens só podem viver em seu corpo físico nesta freqüência. Ignorantes dessa frágil e precária realidade terrena, pensam dar prazer ao oferecer a morte como passagem. Por isso, os belos caboclos, ou os herois como Manuel, assim como os pescadores, atravessam as fronteiras de um mundo instável para gozarem as delícias no colo das divindades que os esperam com grandes preparativos.
Desejo irrefreável de deuses e deusas, diferente do desejo firme e projetado para o futuro dos homens na terra que terminam por realizá-lo no que Bloch chama de utopia concreta tão bem delineada no plano literário por esta obra de Jacques Roumain, cuja releitura se faz importante quando o povo haitiano, de modo emblemático, se debate em armadilhas as mais dolorosas que lhe fazem incapaz de ensaiar estratégias de solidariedade, únicas possíveis para sua libertação, para tornar cada um e todos Gouverneurs de la rosée.
Referências
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[1] O original deste texto compõe a coletânea Haiti: 200 anos de distopias, diásporas e utopias americanas, organizado por Celina de Araújo Scheinowitz, Humberto de Oliveira e Maximilien Laroche, editado pela UEFS, em 2004.
[2] Professor titular do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana (Bahia), onde leciona Literaturas francesa, francófonas e comparada, e, eventualmente, Língua francesa.
[3] MORISSET, Jean. « Miroir indigène, reflet eurogène ». Autóchtones: luttes et conjonctures II. Recherches Amérindiennes au Québec. Québec: Ministère des Affaires Indiennes, v.9 n.4, 1980.
[4] Alejo CARPENTIER, El reino deste mundo. Buenos Ayres: Calicanto,1977, p. 118.
[5] Idem, op. cit. p.101-102
[6] Doravante abreviado como GR
[7] « Bolada Kimalada, ô Kimalada – Vous fuillerez le canal, prenez garde- Vous fouillerez le canal, j edis, prenez garde- La veine est ouverte, le sang court- Ô la veine est ouverte, le sang coule- Bolada Kimalada ».
[8] https://www.vagalume.com.br/dorival-caymmi/e-doce-morrer-no-mar.html
[i] Cf Bhagavad- Gita, IV, 6-8, apud LELOUP, Jean-Yves.Consciência e plenitude. Petrópolis: Vozes, 2002.
[ii] Diferente do inautêntico, o futuro autêntico se caracteriza pela presença de um elemento “excedente” (ein Exzedierendes) permitindo a a transformação de nossa imaginação utópica numa realidade humana em forma de “amanhã”. Para isso, é necessário que o “objeto (do desejo) corresponda a um “ainda-não-ser, a um novum que ninguém pode perceber. Entretanto, esse novum – reconhece Bloch- tem uma tendência nítida de manifestar-se no ser psíquico do homem, além do lugar onde nasce o “ainda-não-consciente”. Para Bloch, “ainda-não-consciente” é definido, em primeiro lugar, como a representação mental do “ainda –não- Ter-sido”na história humana e no mundo. Este “ainda-não”não constitui uma parte do “nada”, nem uma parte do novo, ou de uma “outra vez”. É a esperança messiânica, a força suplementar que permite aos indivíduos, na práxis histórica, realizar este “ainda-não-ser que é – seria preciso sublinhar?- fundamentalmente diferente do não-ser, do nihil,e do néant de la néantisation ontológico-existencial […] (Cf. MÜNZER, op.cit. p.26)